Enlutados de um estado omisso

Por Gleise Oliveira

Boa parte do nosso repertório cultural é passado de geração para geração. São hábitos, costumes que aprendemos socialmente, o comer, o andar, o falar (com seus sotaques, gírias, metáforas). Muitas vezes não nos damos conta de quão abrangente é a cultura em que estamos inseridos ou com qual nos identificamos.

O momento pandêmico tem nos colocado diante de um “novo” hábito cultural que antes não era tão rotineiro: como nos despedimos de nossos mortos e como os tratamos. Lembro-me de pequena, quando tive duas perdas na família, um tio e, poucos anos depois, a minha avó.

Os corpos eram velados na sala da casa. Os nossos mortos dormiam com os parentes em uma longa noite de vigília e visitas. A família era abraçada, os vizinhos lamentavam, riam das lembranças do morto ainda com o corpo estendido na sala e choravam ao se darem conta que não o veriam mais adiante. Dali em frente, a despedida era para sempre.

A família vestia seu morto, acariciava o seu corpo, chorava, servia o chá, o biscoito. Uns choravam sem consolo. Outros riam mesmo, de desespero, por não acreditarem, pela dor, pelo sentimento de impotência, por não terem tido coragem ou oportunidade de expressarem o amor, o arrependimento ou perdão.

Crianças se juntavam para o abraço. Todos ali se despediam do pai, filho, mãe, avó, tio, amigo, colega, conhecido, amigo do amigo. Diziam em voz alta, ou mesmo em silêncio, sobre o valor, o aprendizado a saudade que já sentiriam. Chegava gente de todo lugar, mesmo que estivessem distantes os parentes.

Adulta e morando na capital, notei por algumas poucas experiências, uma mudança no velar, o corpo não entrava nas casas, existia espaço destinado para velar o morto, estrutura já disponível nos cemitérios. Alguns funerais eram com cerimônia de cremação, outros da sala do cemitério iam direto para um jardim, vala ou gaveta. Mas tinha ali, sempre, presença: da família, dos amigos, dos curiosos. Não sei, ao certo, se nas periferias e outras classes esse velar ganhou tal “requinte”.

O relato dessa lembrança, um tanto fúnebre, tem a finalidade de contrapor ao que vivemos hoje. A ausência dos rituais outrora presentes, parece nos transportar para o lugar da incredulidade. Protocolos de viver e morrer.

Caixões fechados que levaram no início da pandemia a incredulidade da morte e auxiliaram na propagação de fake news sobre não serem os corpos das pessoas declaradas mortas. A falta do abraço, a inibição do choro, não levar as mãos aos olhos para enxugar as lágrimas que caem. A impossibilidade de juntar multidões, amigos, conhecidos para homenagear o morto e demonstrar consideração pela família.

A pandemia tem tantos impactos culturais, mais que os automaticamente acionados pelo senso comum (tão importante para sobrevivência) permitem lembrar.

Algumas atitudes parecem acenar para uma naturalização da pandemia. Estamos pouco sensíveis aos absurdos da disseminação da morte, já que ela e a sua notícia acontecem no dia a dia? Não se observa os danos causados ali adiante. Vidas vão se apagando e são transformadas em números.

A brilhante e sensível canção “Inumeráveis”, de Chico César, – que tem produzido verdadeiras denúncias em forma de música – repete em seu refrão que “Se números frios não tocam a gente, espero que nomes consigam tocar”. Na canção, o artista conta histórias de anônimos. São ditos nomes, histórias e vidas que de longe viram estatísticas, mas, dentro do seio familiar e rede social de convívio, são histórias, lembranças e afetos. São lutos e geração de enlutados.

Abril de 2021. No mês mais letal da pandemia, anunciado pelos meios de comunicação, a vida dos que ficam segue a máxima de “quem morre é quem perde a vida”. Os que ficam esperam (ou rezam nas suas crenças) que o mal não chegue em suas casas. Retomam as atividades (ditas) essenciais sem, no entanto, viver a dor do luto em sua profundidade.

A morte está à espreita e qualquer um será o próximo. E quando esse “próximo” se for, os que ficam buscarão no consciente ou inconsciente os motivos e julgarão a falta de cuidado do tal próximo. Ou ainda, sendo um povo de muita fé, a ponto de eleger um governo dito cristão, colocará mais essa responsabilidade no divino, na hora que chegou, no que seria o cumprimento da vontade celestial e, por fim, para não sofrer, para mascarar a dor, para lidar com o “inevitável” se aceitará, feito premissa de vida e morte, que nada poderia ter sido feito.

No íntimo, se perdem muitas vidas e formas de viver. A exaustão da pandemia abre exceções para viver algo, para fugir da realidade. E que os outros sejam os outros. O quente da vida abre espaço para a frieza da morte e os egoístas seguem a rotina e acham justificativas para se permitir: ver um amigo, comemorar por qualquer que seja o motivo, abraçar parentes, viajar para “fugir da pandemia”, etc.

A desobediência civil deveria impor protocolos ao governo sem protocolos. Para cada ação descabida, postura fora de contexto, retumbante discurso de ódio e de desorientação, deveria a sociedade organizada desobedecer a desordem e caminhar num sentido oposto.

Já temos vacinas, mas o extermínio continua. Na pandemia, nas periferias, nas chacinas, na fome, e tantas outras situações evitáveis e possíveis se tivéssemos políticas comprometidas com a vida, a cultura da paz e os princípios de democracia e civilidade mínimos.

Gleise Oliveira é Mestra em Cultura e Sociedade (Pós-Cultura/UFBA), possui MBA em Gestão de Projetos (UNIFACS) e graduação em Comunicação Social (UFBA). Pesquisadora do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (CULT/UFBA), se dedica ao tema da gestão e políticas culturais. Atualmente é bolsista FAPESB no curso de Doutorado em Cultura e Sociedade (Pós-Cultura/UFBA).

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