Baianada em Tóquio

Por Antonio Albino Canelas Rubim *

A fama dos baianos – que não nascem, mas estreiam, conforme professa ditado popular entre os baianos – brota, dentre outras possibilidades, da sua malemolência e seu gingado. Dorival Caymmi aparece sempre citado como ícone dessa baianidade, festejada, criticada e invejada. Aliás, o cineasta baiano Virgílio Neto em inspirado vídeo sobre Salvador como umbigo do mundo, coloca legenda sobre/sob o entrevistado Caymmi perambulando devagarinho, sem nenhuma pressa, para se mover de um lado a outro lado da tela. Tempos infindáveis, plenos de eternidade.

Outro baiano, o famoso Milton Santos, elogia o ritmo lento como precioso para cultura e criatividade dos baianos, por contrapondo aos também baianos, que submergiram sem controle à velocidade do mundo contemporâneo, nas ruas tomadas de carros, nos shoppings cheios de mercadorias, nas pressas do trabalho e do horário que se esvai. O ritmo lento, na contramão, desvia a vida do ritmo veloz de angústias, das corridas loucas por dinheiro, da mobilidade comprometida das metrópoles, do tempo sempre perdido e da improdutividade irracional imanente ao glocal universo capitalista.

O ritmo lento, traduzido de maneira pejorativa por muitos suldestinos como preguiça, alimenta baianos e a sua original cultura, de mestiços traços afro-brasileiros. A preguiça, atribuída de modo senhorial e arbitrário, fere com todo preconceito do mundo os corpos, corações e mentes baianas. O elogio ao ritmo lento não pode evidentemente esquecer suas contradições, dores, erros, falhas e mazelas, que também contaminam a vida dos baianos.

O atributo pejorativo preguiçoso e expressões com baianada e gelo de baiano cravam uma imagem negativa da Bahia e de nós nativos em contraste com certa apologia do trabalho e da velocidade, supostas marcas imanentes do desenvolvimento capitalismo e da sua modernidade/contemporaneidade. O elogio ao trabalho, na sociedade em que todos os trabalhos brutos envolvem maiorias, aparece como ideologia. Como narrativa para “explicar/legitimar” a ascensão social, possível apenas para alguns poucos. Vá trabalhar vagabundo funciona como lema atirado aos pobres, negros, marginalizados e todos os explorados.

A baianada em Tóquio se rebela, em modalidades sub-reptícias, contra esses movimentos e preconceitos. Demonstram tal dissonância, a velocidade do baiano Isaquias Queiroz na sua canoa mágica, vinda da terra das canoas (Ubaitaba); as braçadas velozes em mar aberto da baiana Ana Marcela Cunha e a velocidade potente do soco desfechado por Hebert Conceição para nocautear seu adversário. Medalhas de ouro para a velocidade de baianos, que surpreendem alguns, ao serem comemoradas por habitantes das terras brasileiras.

A escolha do ritmo lento, que vem sendo corroído pelo mal chamado progresso, não impossibilita sua conjugação com ritmos mais velozes, quando se faz necessário. De propósito recorro a um exemplo, que ode causar estranhamentos. O trio elétrico, invenção baiana, se apresenta como palco emblemático da conjunção. O lento movimento do caminhão suporte enseja a festa alegre dos movimentos rápidos dos corpos embalados por ritmos musicais variados, diversos deles de alta intensidade. Um meme chegou a afirmar o ambiente festivo-esportivo atrás do trio como local de treino dos boxeadores olímpicos da Bahia. Pitada de malícia e preconceito contra pular carnaval do jeito de só não vai quem já morreu. Atrás do trio elétrico, corpos agitam, acalmam, enlouquecem, acariciam, vivem efusão festiva no ritmo agitado da música eletrificada. Trio elétrico, tecnologia baiana exportada para todo Brasil e para o mundo, para desprezo daqueles que só vêm tecnologias em outros lugares e latitudes e para contestação dos que não gostam de agitos por uma diversidade de motivos, alguns inclusive justos.

A baianada agitou redes digitais e mundo real. Muita ironia e diversão se produziu nestes tempos sombrios. Bom ver preconceitos trincarem. Bom ver os muitos nordestinos, mulheres, pobres, subirem aos pódios olímpicos para alegria de muitos brasileiros, para a zanga de alguns brasileiros, cheios de preconceitos, raivas e ódios. Bom ver o pulsar da imaginação fértil de ironia dos que se deliciaram com as tensões e os descompassos existentes entre o conservadorismo impositivo dos dominantes expresso em imposição autoritária de monocultura e a riqueza da diversidade social e cultural, que faz e dá vida ao Brasil, inclusive olímpico.

 

*Albino Rubim é pesquisador em políticas culturais. Atualmente professor do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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