Brasil: pandemia e pandemônio

Por Antonio Albino Canelas Rubim

Palavras, palavras, palavras.

Eu já não aguento mais

Gonzaguinha

O agendamento da palavra pandemia parece cotidiano e universal. A pandemia dominou a vida e a transformou com radicalidade. Ela virou agenda pública e privada de todos. Longínqua origem tem a pandemia. Ela provém do grego antigo, reunindo “pan”, que significa tudo, todos, mais “demos”, povo. Diferente da endemia, aumento anormal do número de pessoas contaminadas por uma doença em região determinada, a pandemia se dissemina geograficamente, sai do seu lugar de origem e contamina o mundo. O prefixo “pan”, anteposto a uma palavra, hiperboliza seu significado. O termo se torna onipresente, como hoje acontece com pandemia.

Pandemônio, pelo contrário, pelo menos no Brasil não consegue lugar a cena pública. Poderosas mídias invisibilizam sua visibilidade, apesar da confusão selvagem que produz. Pandemonium tem origem inglesa e literária. O poeta John Milton, no poema épico “Paraíso perdido”, de 1667, inventou a expressão para nomear o centro gestor do inferno. Ele importou as palavras termos gregas “pan” (tudo, todos) e “daimon” (divindade menor, demônio). Pandemonium era o palácio em que se reuniam os demônios sob a presidência de Satã. No século XIX o sentido do termo mudou para “confusão selvagem”.  Hoje, em uso corrente, virou sinônimo de “bagunça, caos, desordem”. Antonio Houaiss dicionariza que pandemônio pode ser empregada como associação de pessoas para praticar o mal.

Viajar pela etimologia das palavras traduz sentidos para uma das tarefas mais essenciais da atualidade brasileira: decifrar o país. Entender ódio, desigualdade, autoritarismo, privilégios, escravidão, discriminações, preconceitos, violências, usos das corrupções, negações de direitos, fragilidades das instituições, ataques e debilidades da democracia, extrema-direita no poder etc. Compreender como a tragédia, histórica e contemporânea, pode conviver com biodiversidade, natureza exuberante, belas paisagens, diversidade cultural, criatividade, alegria, festividades, cordialidade, tolerância e muitas dimensões civilizatórias, que habitam o Brasil e suas contradições.

O complexo enlace entre pandemia e pandemônio sobredetermina, como diria o pensador nada interessante, Louis Althusser, a circunstância brasileira atual. A diabólica conjunção produz uma imensa complexidade para seu conhecimento e seu enfrentamento eficazes. Ela tece uma situação absolutamente singular em termos mundiais. Tal singularidade deveria saltar às consciências de qualquer ser humano capaz de pensar. A combinação perversa de pandemia e pandemônio, ao multiplicar as remissões ao prefixo “pan”, resulta em superlativo caos, em confusão intensamente selvagem, que desafia os brasileiros, sua civilidade e seu futuro.

O singular panorama nacional não deriva apenas das mais de 70 mil mortes, que coloca o país em segundo lugar na triste estatística da pandemia mundial. O Brasil vive ou sobrevive hoje na pandemia, sem gestão sanitária, sem política de saúde, sem ministro de saúde, com um presidente, transformado em garoto-propaganda de fármaco não indicado por nenhum especialista, que boicota todas as medidas médicas preconizadas pela Organização Mundial de Saúde e pelo saber científico. Perspicaz, o Manifesto dos Servidores Federais da Cultura começa com a afirmação de que “vivemos muito mais que uma tragédia sanitária”. Não bastasse o pandemônio na pandemia, muitos outros fatores incidem na exacerbação da confusão selvagem, que agora dilacera o Brasil.

Não bastasse tudo isso, o presidente, familiares, ministério e aliados produzem, por meio de sua política (ultra)neoliberal, uma brutal crise econômica, anterior à pandemia, que corrompe as condições de emprego e de vida da maioria do povo brasileiro, ampliando a profunda desigualdade social, que contamina o país, e a degradante miséria, que adoece o Brasil e os brasileiros.

Não bastasse tudo isso, o bando no poder cria cotidianas crises políticas, através de seu famoso gabinete do ódio. Ele gera agressões cotidianos às instituições e aos adversários, transformados em inimigos a destruir. Ele estimula a simultânea autorização miliciana, explicita ou implícita, para engendrar toda sorte de violências verbais e físicas contra aqueles que pensam diferente do terraplanismo no poder.

Não bastasse tudo isso, eles ainda evocam valores sociais conservadores, retrógados e moralistas em atitude fundamentalista de imposição de pensamentos e comportamentos intolerantes e avessos a qualquer respeito às diferenças, à diversidade cultural e à civilidade nas relações humanas.

Enfim, o singular enlace da pandemia com o pandemônio fere a atual vida brasileira. Ele aprofunda a destruição da, historicamente frágil, democracia brasileira, agredida pelo golpe midiático-jurídico-parlamentar de 2016 e pelas eleições não democráticas de 2018. Ele corrói as instituições da nação, historicamente instáveis. Ele degrada a civilidade, historicamente débil, das relações humanos no país. O desmonte das normas sociais agrava sobremodo a possibilidade de qualquer previsibilidade dos rumos da sociedade. Com regras debilitadas, a sociedade se torna presa dos mais fortes, por meio da violência, simbólica e/ou física. Instala-se um vale tudo, no qual tudo se torna possível e todos os absurdos parecem naturalizados. A banalidade do mal se dissemina. A Casa Grande retorna com aniquiladora força, atuando contra as conquistas, duramente alcançadas, de relacionamentos humanos mais democratizados.

A conjunção pandemia e pandemônio singulariza o cenário brasileiro em relação ao restante do mundo. A complexidade do cenário nacional, em meio ao difícil contexto internacional, torna-se maior, pela sobreposição múltipla do prefixo “pan”: pandemia internacional e pandemônio nacional. O país sofre a pandemia, como todo mundo, mas ela se agrava pelo pandemônio econômico, social, político, ambiental e cultural atiçado pelo bando no poder. Como nunca os significados originários da palavra pandemônio ganham atualidade e vida no sombrio Brasil. Cabe decifrar e enfrentar absurdos.

*Albino Rubim é pesquisador em políticas culturais. Atualmente professor do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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