Depois da pandemia seremos contemporâneos (ou até pós-contemporâneos)

Por Antonio Albino Canelas Rubim

Em outros tempos, quando a internet se mostrava ao mundo, quando ele se inaugurava globalizado e quando todos refletiam sobre a novidade da globalização, escrevi um texto que discutia distinções entre a sociabilidade tecida na modernidade e aquela que florescia na contemporaneidade. Parece que aquelas distinções ainda ganham sentido para poder bisbilhotar os tempos e espaços da atualidade, contaminados pela pandemia, que hoje nos atormenta e nos adoece.

A pandemia atinge a sociabilidade moderna. Ela impõe aos governos responsáveis e aos não genocidas distanciamento social e quarentena. Ou seja, a modernidade, em peculiar modalidade de viver a sociedade, entra em cheque mate ante a disseminação pandêmica do novo coronavírus. Com espaços/tempos presenciais de convivência pública interditados ou fragilizados, a sociabilidade moderna sofre intenso abalo. Em momentos normais, ela se alimenta de convívios em presença nas ruas, praças, parlamentos, estádios, teatros, cinemas, galerias, museus, bares, restaurantes e outros ambientes públicos de compartilhamento social. Sem eles, a modernidade e sua sociabilidade parecem se esvair.

A política, renascida em cara nova na modernidade, tempos depois de sua invenção grega, emerge com emblemático exemplar de acontecimento datado e marcado à ferro e fogo por traços da sociabilidade moderna. Seus formatos socioexistenciais denunciam sua patente filiação à sociabilidade da modernidade. Ela emerge em debates no parlamento abertos ao público, passeatas, barricadas, manifestações de rua, comícios eleitorais ou não e em diversos atos públicos, que requerem a presença e a convivência de agentes políticos, cidadãos e públicos. A política moderna é filha e criadora da sociabilidade moderna. Daí um de seus desconfortos nos tempos contemporâneos.

Hoje, colocadas em recesso quase todas as modalidades modernas do conviver público, resta a restrita presença, quase compulsória, no espaço privado. Nele, o verso “ela faz tudo sempre igual”, cantado por Chico Buarque para outro instante social, parece adquirir seu sentido mais pleno de exaustiva repetição do cotidiano. O tempo e espaço, ganhos à vida privada, face a depressão do mundo público, correm risco de se degradar em vida redundante, invadida pelos afazeres da casa ou, simplesmente, pelo nada.

A quarentena, para quem está aprisionado nela, parece fazer tudo ser sempre igual. Os dias tornam-se iguais, incapazes de distinguir sábados, domingos e os dias-feiras, que compõem a semana em português. Ficamos perdidos na indistinção. Como diferenciar os dias se todos eles parecem? Para quem não trabalha, por alguma injunção da vida, a indiferenciação torna-se notável. Talvez não seja o termo mais adequado para significar o estado de eminente semelhança, que engole e envolve todos os dias, como mais do mesmo. Os dias parecem ser eternamente iguais. O lazer se espraia pelos dias-feiras antes tomados pelo trabalho. Mas ele, em versão remota e à distância, vingativo, pode invadir o ambiente da casa, quebrar o fluxo cotidiano e impor, outra vez, distinções ou até mesmo indistinções, ao avançar célere sobre os dias destinados ao repouso. Agora o trabalho ameaça se impor sobre todos os instantes da vida.

Nada contra rotinas, como se fossem a negação da vida, da autenticidade, do espontâneo e das aventuras que necessitamos viver e viajar. As rotinas se tornam sufocantes se e somente se colonizam a vida, deprimindo tudo que não seja rotina. Aliás, parece possível imaginar que a rotina, ao automatizar atos repetitivos, os transformem em mais fáceis e rápidos, criando tempo livre para a vida fora da rotina, vivenciada com ou sem liberdade, a depender de condições sociais e das opções de cada um. Este pensamento perpassa o instigante livro de Karel Kosik, intitulado Dialética do Concreto. Ao invés de contrapor, sem mais, tempo livre e rotina, caberia imaginar outras conexões complexas e possíveis.

A quarentena põe a vida de cabeça para baixo. Ela redefine dimensões substantivas da vida e da sobrevivência. Vivê-la ou sobrevivê-la não é experiência fácil, sem angústias e tensões. Ela altera de modo radical dimensões do velho normal, com suas rotinas e tempos livres, aos quais, sem notar ou questionar, estávamos acostumados, como peixes dentro d’água.

A quarentena nos retira o espaço público. Aquele espaço compartilhado em presença com outras pessoas, agradáveis ou não, escolhidas ou impostas por circunstâncias sociais. A convivência se torna impossível e proibida por medo da pandemia, da capacidade virótica, destruidora e mortal do (novo) coronavírus. Resta o espaço da casa, confortável para quem tem boa residência e cruel para quem habita em condições de precariedade, como grande parte da população brasileira. Vive-se como nunca o espaço privado, ambiente de mais familiaridade e maior intimidade. Ele mobiliza sentimentos de pertencimento, atitudes de carinho, instantes de cuidados, mas também violências familiares, físicas e simbólicas, muitas vezes silenciadas e invisibilidades. Viver o espaço privado sem abertura ao espaço público, ocasiona estranhamentos. O mundo parece ficar sem chão, de ponta cabeça. O admirável novo mundo obriga a todos a uma adaptação nada fácil de ser experimentada. Daí as angústias, depressões e tensões que penetram corpos e mentes nas quarentenas, em especial de jornadas prolongadas, com a brasileira, devido à irresponsabilidade do governo federal de assumir as medidas sanitárias adequadas.

O onipresente coronavírus não dá alternativas. Só os irresponsáveis negam a evidência da necessidade de distanciamento social como paliativo para enfrentar defensivamente a pandemia e zelar pela vida humana. Tal afirmação não significa desconhecer a duríssimo experimento da quarentena. A experiência é e será inesquecível. Ela impregna nosso corpo de modo avassalador. Será, para o mal e para o bem, experiência na vida de cada um. Por muitos e muitíssimos anos ela será lembrada, nunca sem mobilizar lembranças, ao mesmo tempo, amargas e doces.

O encolhimento da vida pública e a expansão do espaço privado não expressam, em plenitude, as alterações inusitadas das modalidades de vida na atualidade pandêmica. Outra dimensão, nascida na modernidade, mas expandida em progressão geométrica e consolidada na contemporaneidade, se alastra por todos os ambientes e meios. Trata-se dos aparatos sociotecnológicos de produção e distribuição de bens e serviços culturais. Tais aparatos nos inserem em novas modalidades de vida. Eles criam e propiciam uma vivência à distância em tempo real e espaço planetário. Não cabe identificar, de modo equivocado, internacionalização e globalização. Trata-se de conceber que vivemos agora o mundo de modo instantâneo-planetário. Um mundo global não destituído de amores e dores locais.

A sociabilidade contemporânea combina o global e o local, captados na contração de rara felicidade da sintética noção glocal. A contemporaneidade miscigena em sua singular sociabilidade, convivência e televivência. Ou melhor, vivência em presença e vivência à distância, viabilizada pelos aparatos tecnológicos socioculturais. No mundo proliferante das telas, a expressão tele adquire crucial sentido. Às arcaicas tecnologias denominadas de telefone e televisão se agregam novas como telescópios e telemóveis, modo adequado-literal dos portugueses denominarem os celulares. Infinitas teles, mais ousadas, são usadas por diversos autores para designar mundos à distância, que se tornam dados vitais da experiência humana no planeta Terra: televivências, telerealidade etc. Telas e teles fazem a sociabilidade atual. A pandemia ao tensionar a convivência, pública ou privada, nos obriga à televivência. Ela, já existia, mas não era vivida no cotidiano por grande parte da humanidade. Agora, ela se disseminou e se naturalizou cotidiana. Proliferaram trabalhos remotos, ensino à distância, reuniões virtuais, proliferantes lives e muitas outras vidas estendidas, hoje mescladas, de maneira umbilical, com às vidas gestadas no entorno e nas proximidades.

A inibição da convivência pública, as tensões da vida privada prolongada e a exacerbação dos registros de vidas à distância, com realidades tão reais quanto aquelas tecidas pela proximidade, conformam um admirável novo mundo e a nova sociabilidade. Enfim, a pandemia nos tornou contemporâneos.

A exacerbação das vidas à distância, tão sedutoras para os jovens em seus eternos tempos de jogos eletrônicos, e seu desencanto com as agruras das vidas públicas e privadas, talvez nos tornem perigosamente pós-contemporâneos, como antidoto à solidão e as angústias da vida, que não se pode viver.

*Albino Rubim é pesquisador em políticas culturais. Atualmente professor do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (UFBA). 

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