Infeliz atualidade

Por Albino Rubim

Para Juliana Carvalho e Lia Baron,

de uma conversa

Desenvolvi, como pesquisador do CNPq, uma investigação sobre a trajetória das políticas culturais no Brasil. Durante e ao final do estudo pude constatar que tristes tradições marcavam tal itinerário. Em 2007, em artigo publicado no livro Políticas culturais no Brasil os achados foram, pela primeira vez, nomeados como: autoritarismo, caráter tardio, descontinuidade e desatenção. Com o tempo amadurecido da pesquisa as tradições foram numeradas três: ausência, autoritarismo e instabilidades, algumas delas ainda no singular. As três tristes tradições foram sendo lapidadas e no livro As políticas culturais no governo Lula, de 2010, já aparecem todas elas no plural: ausências, autoritarismos e instabilidades, no formato em que depois se consolidam, ganhando densidade explicativa, como ocorre no livro Cultura e políticas culturais, de 2019.

O aprimoramento da nomeação corresponde a maior precisão em seus sentidos. Na noção de ausências estão acolhidas tanto a falta de políticas culturais, que persiste em grande parte da história brasileira, quanto a atitude neoliberal, de buscar o estado mínimo, abandonar a realização de políticas culturais e entronizar o mercado, esse ente onipresente e fantasmagórico, como o regulador do desenvolvimento da cultura no país, por meio da utilização do incentivo fiscal do estado às empresas para “patrocinar” cultura. A ausência do estado e das políticas culturais acarretou distorções. O recurso financeiro envolvido passou a ser crescentemente proveniente do poder público. Em 2016, por exemplo, ele atingia 97% do total dos recursos movimentados pela chamada Lei Rouanet. Pior, apesar de públicos, os recursos dependem da decisão das empresas para definir os projetos a serem contemplados. Ou seja, recursos públicos e decisão privada.

A denominação autoritarismos engloba duas vertentes associadas. De um lado, remete aos longos períodos ditatoriais vivenciados pelo Brasil, seja no Estado Novo (1937-1945), seja na ditadura civil-militar (1964-1985) e suas atuações no ambiente cultural. Como acontece, em geral, em ditaduras, elas combinaram uma atuação repressiva contra agentes culturais, liberdades de criação e expressão, com uma atitude propositiva em busca da construção de culturas autoritárias e oficiais. Dois exemplos notáveis da ação de estados ditatoriais na cultura: as criações do SPHAN, em 1937, depois tornado IPHAN, e da FUNARTE, em 1975, duas das maiores instituições culturais nacionais, nascidas em governos ditatoriais. O termo também serve para visibilizar o autoritarismo estrutural que nutre e perpassa a sociedade e a cultura brasileiras. O autoritarismo estrutural deriva, como herança maldita, da longuíssima escravidão negra, quase 400 dos 520 anos de existência do Brasil. A imensa desigualdade social existente, legado da escravidão, entranha o autoritarismo estrutural na vida brasileira. Ele se manifesta como violência simbólica ou física contra todos os que não pertencem à Casa Grande. 

A noção de instabilidades decorre das descontinuidades administrativas, que caracterizam a gestão pública brasileira, influenciadas pela simbiose parasitária entre sistema político e administração pública, prejudicando a da gestão do estado. Estas descontinuidades, graves em toda administração pública, na área da cultura tendem a ser ainda maiores, devido à desatenção dedicada à cultura e a concepção prevalecente da cultura com evento, que prescinde de trabalho planejado e continuado. O caráter por vezes desorganizado, por vezes arredio do campo cultural, também aparece como fator possível de potencializar instabilidades. O exemplo mais notório das instabilidades nesta esfera é a passagem de 10 dirigentes com responsáveis nacionais pela área da cultura entre 1985 e 1994, anos de implantação do inaugurado Ministério da Cultura no Brasil.

Quando fiz tais estudos e publicações nos anos dourados das políticas culturais no Brasil, com destaque para o governo Lula e a gestão de Gilberto Gil, imaginei que minhas noções e teses estavam sendo superadas. Escrevi sobre este tema, a partir de uma investigação sobre as políticas culturais no governo Lula. Em lugar das ausências, tínhamos o estado nacional implantando políticas culturais. Em lugar dos autoritarismos, emergia uma concepção ampliada de cultura, que incluía novas áreas e agentes, tradicionalmente excluídos das relações com o Ministério da Cultura, e políticas públicas de cultura, que resultavam do debate e da deliberação públicas, por meio de conferências, conselhos e colegiados. Em lugar das instabilidades, floresciam políticas de estado, imaginadas para além de governos, algumas delas ancoradas e inscritas na própria Constituição Federal, como ocorreu com o Plano Nacional de Cultura (PNC) e o Sistema Nacional de Cultura (SNC).

Parecia que a revolução democrática que acontecia no campo cultural, com limitações que não faz sentido tratar neste breve texto, estava a transformar a situação da cultura no país. O período de vida democrática, já longo para os padrões antidemocráticos nacionais, mais de 30 anos, também parecia sugerir uma mudança política na sociedade brasileira, com consolidação e estabilidade da democracia. Todo o sonho-ilusão se desfez com o golpe midiático-jurídico-parlamentar de 2016 e as eleições antidemocráticas de 2018, através dos quais as classes dominantes tomaram o poder, à ferro e fogo, destruindo a construção democrática que vinha, com limites e pacificamente, se estabelecendo no Brasil.

A cultura, como outros campos sociais, sentiu forte os novos velhos tempos de estado de exceção. Desnecessário descrever as violências simbólicas e físicas cometidas contra a democracia, a cultura e as criativas políticas públicas de cultura. As ausências retornaram com a destruição das políticas anteriores e a não criação de nenhumas outras, a não ser a terra arrasada. Os autoritarismos voltaram com censura, atentados às liberdades, violências contra agentes, grupos e comunidades culturais e com as ervas daninhas das intolerâncias, preconceitos, privilégios e discriminações inerentes ao autoritarismo estrutural, que fere o país e caracteriza as classes dominantes brasileiras. As instabilidades regressaram com a tentativa (2016) e depois a extinção (2019) do Ministério da Cultura e com a passagem acelerada de cinco secretários especiais de cultura em pouco mais de um ano e meio. 

Infeliz atualidade vivemos na cultura no Brasil. Hoje, as três tristes tradições retornam com inominável ferocidade. Velhas noções ainda servem para desvelar o novo velho país. Terrível atualidade.   

  

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