Me engana que eu gosto (ou as mentiras que gostamos de ouvir sobre a Lei Aldir Blanc)

Por Humberto Cunha Filho

Imagino ter sido uma das primeiras pessoas a publicamente defender uma ação governamental específica para o setor cultural, em face da pandemia COVID-19, quando publiquei, no site do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais, o artigo “Previdência e Providência para os Artistas”

Lembrar isso, não significa reivindicar qualquer pioneirismo, pois a situação nos levou a vivenciar a reflexão de Edgard Morin, quando ele nos recorda que “imaginamos que temos ideias, mas de fato as ideias é que nos têm”. Ou seja, por causa das mesmas premissas, resultado da situação comum, todos pensaram de forma similar, tanto no Brasil como em muitos países.

Aqui, vários parlamentares, dos mais distintos espectros partidários propuseram projetos que, reunidos, redundaram na Lei nº 14.017, de 29 de junho de 2020, a qual está sendo chamada de Lei Aldir Blanc. Ao tramitar na Câmara e no Senado esta Lei recebeu votos contrários apenas do mais liberal dos partidos existentes no Brasil; também foi devidamente sancionada pelo Presidente da República, com único veto relativo a prazos de repasses do dinheiro. Tal veto, porém, já foi suprido pela emissão de uma Medida Provisória que alocou os 3 bilhões de reais a serem descentralizados a Estados e Municípios, para que façam os pagamentos aos destinatários.

Portanto, tudo correu aparentemente muito bem, não fossem determinados oportunismos políticos, que burocratizaram os fluxos, tornaram dependentes os destinatários e emitiram a mensagem macunaímica de que políticas culturais não são obtidas às claras, mas a partir de subterfúgios.

A burocratização decorreu de criar um sistema de sucessivos repasses, primeiramente no âmbito dos entes da federação, depois, destes para os destinatários finais; além disso, possibilidades de estornos nos casos de incompetência operacional dos Municípios. Tudo isso em detrimento de usar ferramentas já testadas e estruturas já existentes como os aplicativos feitos para o benefício geral e toda a ramificação das instituições bancárias do povo brasileiro.

A lei ficou tão complicada que, além de toda uma série de regulamentações ainda necessárias, a comunidade cultural está demandando, para entende-la, e muitos dos defensores desta estrutura normativa estão ofertando cursos, oficinas, lives, vídeos, consultorias e outras coisas do gênero. Isso leva à cogitação sobre um resultado desejado, seja por imperícia na feitura da lei ou por planejamento proposital de quem gosta de ver pessoas dependentes. A situação evoca a lembrança das palavras de Jehing, ao escrever “A Luta pelo Direito”, sobre “a situação dramática de quando o povo não conhece seu direito, nem o direito conhece o seu povo”.

Porém, talvez o pior de tudo é a vinculação dessa ação governamental de emergência à ideia de que ela serve para implantar o Sistema Nacional de Cultura, outra coisa mal resolvida, que precisa ser debatida às claras, resultar de uma lei que seja objeto de debate social franco e plural, o que não se conseguiu obter até agora, dentre outros, por idênticos defeitos como os que ora permeiam a legislação comentada. 

O fato é que a cidadania cultural não pode ser construída na sombra, na oportunidade de ocasião, no momento aflitivo; ela merece exatamente o oposto: luzes, continuidade e serenidade.

Repudio, portanto, essas coisas, e lamento outras, dentre as quais, Aldir, terem usado teu sonoro nome neste labiríntico vão, principalmente por ter aprendido com você que “o show de todo artista tem que continuar”, certamente para além, muito além, da pandemia.

*Humberto Cunha Filho é professor de Direitos Culturais na Universidade de Fortaleza  

 

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