Notas sobre a Lei Aldir Blanc e os desafios da cultura brasileira frente à pandemia de COVID-19

(texto publicado incialmente https://medium.com/@cpaiva.cultura em 23 de junho)

Por Carlos Paiva

A cultura brasileira encontra a pandemia da COVID-19 herdando dois graves problemas: tentativas de criminalização das políticas culturais pela base do governo Jair Bolsonaro e a ausência de um sistema de fomento nacional que consiga abarcar a heterogeneidade do campo e da diversidade regional do país.

Somado a este contexto adverso, a cultura é, em todo o mundo, um dos setores mais afetados pela pandemia. Foi um dos primeiros a fechar, será um dos últimos a abrir. Mesmo quando abrir, sofrerá restrições no formato de abertura por tempo considerável. Como agravante, em relação a outros setores em situação similar (o turismo, por exemplo), a cultura possui alta informalidade e intermitência em suas relações de trabalho. O IBGE indica que, em 2018, 44% dos trabalhadores são por conta própria, bem acima da média de 25,4% para toda a economia. (IBGE, 2019) Essa precariedade se reflete nas reservas financeiras de quem trabalha no setor: pesquisa do OBEC-BA aponta que 60% dos indivíduos respondentes possuem recursos para se manter apenas por até três meses. (CANEDO et al, 2020)

Ao mesmo tempo, nunca a produção artística e a cultura foram tão essenciais. Imaginem essa quarentena sem livros, música, filmes ou histórias. Cultura e arte como entretenimento, como refúgio para saúde mental, e também como atividade que nos (re)conecta em tempos de isolamento social, que nos alimenta das questões que atravessam os tempos e se fazem presentes, porque tratam do que nos faz humanos.

Como produção de sentido é a matéria prima dos trabalhadores da cultura, dos artistas, o setor é um dos melhor posicionados, neste momento, para produzir valor social complementar aos serviços médicos e de infraestrutura básica. Afinal, diante das sérias restrições sanitárias, as pessoas procuram o essencial, e dar sentido à nossa realidade é sempre um bem de primeira ordem.

É nesta situação de grave vulnerabilidade e crescente demanda pela atividade artística e cultural que a Lei 14.017/2020, conhecida como Lei Aldir Blanc, é aprovada pelo Congresso Nacional, com uma maioria raramente vista.

Por um lado, a legislação objetiva tirar o setor do risco de destruição e terra arrasada no pós-pandemia, perdendo equipamentos, empresas, associações e profissionais que o Brasil levou décadas para constituir. Sem eles o patrimônio da cultura brasileira deixa de cumprir sua função de pertencimento, de bem-estar e um dos grandes diferenciais do Brasil no mundo. Os mecanismos de renda emergencial mensal aos trabalhadores da cultura e o subsídio mensal para manutenção de espaços, grupos e organizações culturais que tiveram as suas atividades interrompidas por força das medidas de isolamento social cumprem essa a função estabilizadora durante a crise o que permite um pós-pandemia menos devastador. Junto com esta função preventiva, há algumas oportunidades que a lei apresenta.

Oportunidades

primeira é, na ausência de um executivo federal capaz de formular e implementar políticas culturais, abrir espaço para valorizar o poder legislativo e os executivos estaduais e municipais como arenas de criação e implementação de políticas culturais positivamente inovadoras.

Tradicionalmente as demandas da cultura são direcionadas ao executivo, quando muitas das soluções poderiam ser apresentadas ou engendradas diretamente no legislativo. A Lei Aldir Blanc é um ótimo exemplo disto. Este pode ser um aprendizado importante para o setor, expandindo seu repertório de atuação política.

Ao mesmo tempo, no lado da execução, nunca estados e municípios estiveram tão em evidência. Ao migrarmos de um modo único (o modelo federal) para um debate mais diverso (a multiplicidade de experiências de gestão cultural nos entes subnacionais) enriquecemos nosso repertório e expandimos nossa imaginação quanto às alternativas disponíveis para enfrentarmos os desafios do fomento à cultura.

segunda oportunidade, com o repasse de recurso consideráveis para estados e municípios, é a materialização do que seria um sistema nacional de cultura funcionando na prática. Já estamos observando a formação de redes de intercâmbio de boas práticas de gestão, debates para formular propostas eficazes de políticas públicas e divisão de responsabilidades entre os níveis federativos.

Já há razoável consenso de que não existe possibilidade de política de abrangência nacional que não seja por meio da articulação federativa. A atuação concorrente da União, estados e municípios no campo da cultura resulta, na maior parte das vezes, em um sombreamento de investimentos pelos três níveis federativos em algumas áreas, enquanto outras ficam com pouco ou nenhum investimento, em um modelo de atuação evidentemente pouco efetivo. Essa falta de coordenação é agravada quando o governo federal se coloca no papel de “Secretaria de Cultura do Brasil”, entrando em um nível operacional para o qual não tem capacidade e se afastando da função de exercer uma coordenação estratégica de um desejável Sistema Nacional de Cultura. Quando age como fomentador direto, o governo federal tem muita dificuldade em dar escala nacional a sua atuação, não percebe nuances regionais e realiza um acompanhamento dos investimentos aquém do padrão adequado. Todos os programas nos quais o antigo MinC conseguiu grande alcance passaram pela descentralização para estados e/ou municípios.

A atuação descentralizada tende a garantir maior qualidade na seleção de projetos. Há dinâmicas culturais regionais que são menos evidentes para o governo central ou para comissões de seleção que analisam propostas de todo o território nacional. Seleções estaduais ou municipais terão melhor condição de observar essas dinâmicas no momento de decisão de investimento. Da mesma forma, o acompanhamento dos investimentos tende a ter melhor qualidade pela proximidade territorial do concedente de recursos com seus beneficiários. A descentralização permite também, potencialmente, maior capilaridade dos investimentos, com melhor distribuição territorial do fomento à cultura. Do ponto de vista dos demandantes por recursos, observa-se que seleções de recorte regional geram expectativa de maiores chances de sucesso, resultando em maior participação dos agentes culturais.

terceira oportunidade, de certa maneira forçosa por conta da crise, é a expansão dos públicos atendidos pelos órgãos de cultura dos estados e municípios. Profissionais e organizações que vêm desenvolvendo suas atividades com pouco ou nenhum subsídio público, em situação de crise terão que interagir com o estado. Pesquisa do OBEC indica que aproximadamente 44% dos indivíduos e 32% das organizações nunca solicitaram apoio aos governos locais. (CANEDO et al, 2020) Fazer com que os recursos da Lei Aldir Blanc alcancem este público requererá um aprendizado de ambas as partes, e que pode resultar num entendimento melhor por parte do estado do setor em que atua e, por outro lado, numa mudança na compreensão do papel do estado por parte de agentes que não consideravam o poder público em suas estratégias de ação.

quarta diz respeito aos editais, chamadas públicas, prêmios, aquisição de bens e serviços vinculados ao setor cultural, com recursos garantidos na lei.

Uma importante função dos editais deve ser equipar o setor cultural para as novas condições de atividade não presenciais e dar segurança sanitária para as atividades presenciais, quando novamente permitidas. As restrições de movimentação para circulação da população e o fechamento de equipamentos culturais pode durar mais alguns meses e pode se repetir se houver várias ondas. Alguns especialistas dizem que a situação pode perdurar por até quatro anos. Desta maneira, é fundamental que parte dos recursos sejam direcionados para habilitar o setor a voltar a ofertar sua produção neste novo contexto. E isso envolve ao menos três grupos de investimentos:

(i) Estruturar espaços, grupos e profissionais com os equipamentos e serviços que deem condições de trabalho durante a quarentena (exemplo: boa conexão internet, câmeras, microfones, assinatura de programas de transmissão de conteúdo, programa de edição de áudio e vídeo, etc.).

(ii) Estruturar espaços e grupos com os equipamentos de segurança para reabrir, para que possam ter atividades até que haja vacina ou tratamento.

(iii) Permitir que profissionais e organizações possam ter acesso a capacitação para atuar tanto no período da quarentena quanto na abertura com restrições relacionadas a segurança sanitária. Oportunidades de qualificação podem focar também no fortalecimento de capacidades que não estavam desenvolvidas (ex: mapeamento de públicos), e que neste momento se tornam ainda mais relevantes.

Por fim, a quinta oportunidade também diz respeito aos editais e talvez seja a mais importante de todas, por dar sentido às anteriores. Mais do que nunca, a arte e a cultura não podem se retrair e deixar de cumprir o que lhe conferem valor social. Não podemos viver apenas de produções anteriores. Depois de estabilizar e equipar o setor para condições de trabalho com segurança, é fundamental estimular para que produza e faça o que é sua especialidade: dar sentido(s) às nossas experiências individuais e coletivas e compartilhar isso socialmente. Este é o valor da cultura e uma necessidade destes tempos.

Nosso desafio

Beth Ponte, no artigo “Ecossistema cultural em perigo”, lembra que esta crise nos atinge em contexto de profunda desigualdade. Seu texto cita a entrevista do epidemiologista brasileiro Átila Iamarino que usou desastres naturais como exemplo para falar sobre as distintas formas em que a pandemia atingirá países desenvolvidos e em desenvolvimento. “No início de 2010, com intervalo de apenas 1 mês, dois fortes terremotos atingiram o Haiti e o Chile. O terremoto do Chile, de magnitude 8.8 na escala Richter, foi proporcionalmente 500 vezes mais forte que o terremoto haitiano (…). No entanto, o Haiti registrou cerca de 200 mil mortes, contra aproximadamente 1 mil no Chile. Além disso, o Haiti, que já registrava índices de extrema pobreza, sofre até hoje — 10 anos depois — com as consequências estruturais, econômicas e sanitárias daquela tragédia.”

Beth Ponte conclui falando “Se essa pandemia é um terremoto teremos consequências e processos de recuperação bastante distintos em diferentes partes do mundo. O mesmo se aplica para os ecossistemas da cultura. Dentro do mesmo país e mesmo dentro do setor criativo e cultural, que é tão diverso, podemos ter diversos Chiles e diversos Haitis.”

A Lei Aldir Blanc oferece os dispositivos necessários para alcançarmos os mais vulneráveis à crise, que podem não estar sob os holofotes, mas são parte fundamental do setor. A Lei oferece os meios para evitar que a cultura não sofra impactos tão devastadores que em dez anos estejamos ainda tentando reconstruir o setor. Isso vai exigir de todos uma capacidade de rápida adaptação, abandonando velhos defeitos e aperfeiçoando novas habilidades e qualidades que serão incorporadas para além da crise. Demandará uma dose de realismo quanto à gravidade da situação e uma consciência do lugar da cultura para além das narrativas autocongratulatórias e autocentradas. A Lei Aldir Blanc é um instrumento que permite que atravessemos a pandemia e, talvez, aprendamos a ser melhores. Mas não é uma garantia. A extensão do sucesso na sua implementação será em função de como nos entendemos nessa crise. Se conseguiremos ou não concretizar o potencial dependerá de como vamos utilizar essa importante oportunidade conquistada.

Referências:

CANEDO, D; LIMA, C.; PONTE, E. ; COSTA, L.; CAMPOS, L. G.; QUEIROZ, M.; SOUZA, R. P. T. R. ; PAIVA NETO, C.; GUERRA, C. M.; CALDAS, R; CARVALHO, R. Impactos da COVID-19 na Economia Criativa – Boletim Resultados Preliminares – Edição 5 2020 (Boletim periódico de pesquisa).

PONTE, Beth. Ecossistema cultural em perigo. Medium, 2020. Disponível em: https://medium.com/@pontebeth/ecossistema-cultural-em-perigo-39fe897f2da9. Acesso em: 23 junho 2020.

Sistema de informações e indicadores culturais: 2007-2018 / IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. – Rio de Janeiro IBGE, 2019.

*Carlos Paiva é gestor e pesquisador em gestão pública e políticas culturais

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