Relatos de internação e tratamento

Por Antonio Albino Canelas Rubim*

No início de maio, não sei precisar quando, comecei a sentir fortes cansaços a qualquer esforço realizado. Pouco a pouco o quadro se agravou. Mais cansaço e mais falta de ar. Imaginei ser algo relacionado ao coração, tão afetado pelos desmandos no Brasil e pelas dores de tantas mortes em crescendo devido à pandemia. Resolvi consultar um médico. No cardiologista exames corporais feitos e depois mais exames para fazer. Entre eles uma tomografia de tórax, solicitada pela atenção, sensibilidade, cuidado e urgência vista pelo cardiologista. Assim, começa este relato de uma internação nos ambientes da COVID-19.

Dia 13 de maio de 2020 – terça-feira

Logo cedo exame de sangue e outros afins. Depois, horas e mais horas esperadas em uma clínica particular para fazer a tomografia. Eram 12 horas quando fiz o exame, sob muitas desculpas por tanta demora: quase quatro horas. Motivo para tanto tempo passado: muitos exames marcados sem considerar os novos procedimentos de higiene demandados pelo coronavírus. Passo na casa de meu irmão médico, que trata de exames de imagem. Após o almoço, em casa, recebo a sugestão dele e do médico, que analisou o exame na clínica e com quem meu irmão conversou. Diagnóstico dos dois: pneumonia suspeita. Melhor buscar uma emergência médica para saber da necessidade ou não de internação. A grande ameaça paira no ar: suspeita de COVID. Na emergência do Hospital Português socorros iniciais, medicações e receber oxigênio, pois se verificou que ele estava bem abaixo das condições normais necessárias para ventilar bem o corpo. Depois o veredicto: internação necessária e imediata por suspeita de ter o corpo e os pulmões invadidos pelo coronavírus. Sou levado para ala especial para suspeitos e pacientes de COVID. Não posso ter acompanhante. Meu filho mais velho, Iuri, que estava comigo no hospital, deixa minhas roupas, pois imaginávamos que a internação seria uma possibilidade nada remota. Por volta das 21 horas estou internado na ala especialmente destinada aos suspeitos e aos doentes de COVID-19.

No quarto 204 estou instalado em outro mundo. Lugar da solidão do eu sozinho, visitado por estranhos seres com estranhas roupas de proteção, que te informavam a cada instante das diversas visita a sua situação de paciente suspeito de uma doença ameaçadora para todos. Entradas rápidas e de horário marcado do pessoal da saúde, da nutrição e da limpeza. Todos agiam com veloz gentileza. Antes de sair realizavam um verdadeiro ritual ao se desfazer de parte da indumentária estranha e necessária, agora jogada no lixo. Todos os cuidados com a higiene não eram poucos. Marcas da preocupação estavam estampadas nos rostos e nos gestos cuidadosos e precavidos. A sensação é de viver no universo da doença. Indispensável rotina exigida pelo altíssimo poder de contágio do coronavírus. O ritual, repetido muitas vezes, lembrava e reafirmava a cada instante minha situação de paciente, de possível contagiado por uma doença avassaladora em seu potencial destrutivo.

Na noite da internação, para manter a própria sanidade e informar minha família, enviei algumas notícias cuidadosas pelo Whats App para não expressar e suscitar preocupações. Consciente ou não, recorri ao trivial. Tomei banho e jantei. Confesso que o jantar não era o manjar dos deuses, mas como se diz deu para o gasto e para o gosto. Tudo muito gosto hospital. Ou seja, sem graça. Mas vamos lá. Aqui não é um hotel cinco estrelas. Fora isto, creio que vou dormir bem, depois de um dia de tensões e de longas esperas pela manhã e à tarde. Fiquei alegre que os livros trazidos tenham podido ficar comigo no quarto. Os livros poderiam me fazer viajar para outros mundos distantes da onipresente COVID, que tudo comandava neste ambiente. Não se preocupem. Está tudo bem.

Dia 14 de maio de 2020 – quinta-feira

Resolvi escrever relatos para a família. Era uma maneira de fazer o tempo passar mais rápido, de ter alguma relação humana na solidão do isolamento de meu quarto e, enfim, de informar e, quem sabe, tranquilizar toda família apreensiva com a ameaça de COVID. Relato da primeira noite. Dormi muito bem. Creio que dormi por volta das 23 horas. Bom sono. Nem tive as camisas suadas. Acordei três vezes para ir ao banheiro. Para realizar algo tão comum, tenho que realizar uma operação para desconectar o oxigênio. Nada difícil depois da primeira vez e das explicações da enfermeira. Acho que o oxigênio me deixa mais confortável. Não tive tosse. As quatro horas da manhã ou madrugada acordo assustado por dois seres com roupas quase de ficção que me abordam para realizar o exame desagradável. Depois do susto, vejo um enfermeiro e uma enfermeira. Eles vieram fazer o famoso e inevitável exame para saber da minha relação ou não com o coronavírus. Vasculham o nariz e a boca. Um filete entra na profundidade de seu nariz em ação nada agradável, apesar de cuidados. Ainda meio sonolento outra estocada agora na garganta profunda. Mais uma vez cuidados e ações pouco agradáveis. Estranho, a necessidade tornou as invasões suportáveis. Depois de tudo, penso bom ter feito o exame para dirimir minha situação angustiante de suspeito ou não. Torço, por óbvio, pela segunda opção. Tento voltar a dormir, esperando ser logo acordado pela próxima visitação.

Não sei se pela tensão ou porque antes dormia, passei a sentir frio. Aqui no hospital se vive nos 20 graus. Pedi outro cobertor e meias. A enfermeira, gentil, trouxe dois lençóis, que quebraram o galho de modo possível e improvisou duas tocas cirúrgicas como meias nos pés. Dormi até cinco e meia, quando passou o pessoal da limpeza para retirar o lixo. Pouco depois, entra outra enfermeira para tirar pressão e temperatura. Ambas normais, como também aconteceu ontem à noite, sem que eu tenha tomado os remédios de pressão. Em suma, dormi bem e estou legal vivendo meio no polo norte. Se cuidem bem. Não se preocupem. Estou bem. Quando puder envio relatos.

No hospital se dorme aos sobressaltos das preocupações, dos medos, das apreensões e das visitas de hora marcada ou sem marcação, como aquela do esperado exame para saber do coronavírus e de sua invasão ou não de meu corpo e meus pulmões. Na circunstância atual aos sobressaltos das constantes e necessárias visitações soma-se o horror da doença, que apavora todos aqueles sensatos e que têm algum amor aos próximos e a si mesmo. Algo não tão comum na combinação de pandemia e pandemônio que alucina brasileiros e Brasil.

A enfermeira da manhã disse que estava chovendo à noite. Fico preocupado. Tanta chuva em uma cidade que sempre se dá mal com chuva é para deixar qualquer um apreensivo. Como está a casa? Mandem notícias de vocês todos. Já estou na rede. Pelo menos no grupo da família Rubim. Vejam se podem enviar para o grupo Bora Brasil umas fotos de Guile que eu selecionei. Estão em um papel ao lado do meu computador. Vocês devem mandar as que não estão grifadas. Estas já foram enviadas. São fotos que Guile aparece sozinho. As fotos são nosso presente digital neste tempo de vida quase virtual. Presente de 11 anos. Agradeço o envio. Fiquem tranquilos. Logo, vamos estar todos bem. Depois que obtive os lençóis, ficou tudo tranquilo. Vou ver se consigo as meias e digo a vocês. Também achei estranho não suar. Por incrível que pareça o tubo do oxigênio não incomodou muito. A enfermeira me explicou como retirar quando necessário para ir ao banheiro e foi tudo tranquilo, depois da primeira vez. O estranho é ter de lidar com um quarto sem saber até onde vai a higiene. Estou tendo todos os cuidados. Mas é difícil estar atento a tudo em todas as horas. O pavor da doença nos impõe uma atenção que torna quase impossível viver. Entre tantos cuidados, talvez sobre algum tempo para viver.

Já recebi a visita de mais dois trabalhadores de saúde. Procuraram saber pormenores em relação a meu estado. Muito simpáticos. Minha oxigenação está oscilando entre 94 e 95. A enfermeira, que foi a segunda visita, disse para eu ficar sem oxigenação, para exercitar os pulmões. Ela afirmou que ficar o tempo todo na oxigenação vicia os pulmões. O bem-estar, depois das angustiantes faltas de ar, vicia mesmo. Estou me sentido muito bem sem tomar oxigênio, mas continuo com o acesso a ele se necessário. Espero que não seja necessário. Precisar significa sentir ausência de ar, substância tão vital para a vida. Tomei também o café da manhã. Fiquei surpreso. Mamão, bolo, pão com queijo etc. Sem querer derramei o café. Claro que não ia tomar, mas fui ver se era café ou chocolate. Infelizmente era café derramado. O quarto ficou cheirando à café, mesmo depois da limpeza. Não tomo café, mas aprecio o aromático cheiro de café. Fora isto, escrevi um pequeno texto sobre os tempos em que vivemos. Vou reler e depois envio para vocês. Os trabalhadores de saúde eram um médico bem jovem, chamado Gabriel, e uma enfermeira, que não lembro o nome, pois são muitas as visitas de enfermeiras e poucas as de enfermeiros. Há pouco, chegou outra enfermeira que mediu temperatura e pulso. Todo normal. A enfermeira desta era mais fácil de lembrar. Ela se chama Lindinalva.

Pela manhã, para o tempo passar, havia resolvido escrever um texto no celular. Um pouco incomodo, mas possível. O texto se chamou Tempos sombrios e trevas. Não é um texto sobre minha situação atual de internado e suspeito de COVID, mas acerca das circunstâncias delicadas vividas pelo Brasil e a ameaça, nada desprezível, das trevas de uma nova ditadura. O desmoronamento da democracia junto com a conciliação e covardia das instituições que restam, caso não haja resistência, pavimentam o caminho das trevas. O sentido do texto, em resumo, é esse: os tempos sombrios que vivemos e a terrível ameaça das trevas, mais uma vez. Enviei o texto às 09:58 horas. Lembro agora que no café senti falta de banana da terra.

Acabo de almoçar. Frango, arroz, purê, verduras e um geleia de sobremesa. Nada de matar de inveja, nem de fome. Comida de hospital: honesta e quase sem gosto. Saudades das comidas de Linda, Tiê e Manuela. Mas dá para ir levando. Assim não vale. Vocês ficarem mandando fotos de comida e eu alimentado pelo menu de hospital. Acho que estou falando muito de comida. Será falta de assunto? Fiquei intrigado. Internado na solidão do quarto as pequenas coisas parecem ganhar um sentido que na vida agitada não têm, pois nela sempre estão invisíveis. Cedo falei com Jorge Luiz por mensagens. Fátima e Rosane ligaram. Mandem notícias. Parece que o dia hoje está ensolarado e iluminado. Fico muito alegre em imaginar um dia de sol. Depois de tanta chuva, o sol traz um animo enorme. Tem janela para um lado do hospital, com uma espécie de jardim no meio. Entra por ela uma luz, que imagino maravilhosa. Vou ver se leio um pouco e durmo. Afinal, não há muito o que fazer aqui. Nem uns prantos para lavar como fazia em casa na tarefa caseira definida.

Relato do dia de hoje. Estou bem, apenas cansado da tarde agitada. Até exercícios fiz na interessante sessão de fisioterapia. Muitos e agradáveis telefonemas. Além da família: Osvaldo, Jerônimo, Maurício, Maerbal e Neide. Da família, um telefonema muito especial de Guile. Também mensagens de diversas pessoas. Fiquei espantado com a repercussão do texto, que enviei para a família e algumas pessoas. Ernesto publicou em sua página com uma nota noticiando que eu estou hospitalizado com suspeita de COVID. A nota mobilizou muita gente amiga e muitos alunos ensinados pela vida acadêmica. Uma grande notícia: as meias islandesas de Tiê chegaram via Fátima e Valéria. Um par delas, bem quentinhas, já está em meus pés. Depois do almoço tentei ler um pouco. Pensava também dormir, mas não deu. Telefonemas e mensagens tomaram meu tempo, invadido por meio desse pequeno e poderoso aparelho tecnológico, que por vicio chamamos de telefone celular. Hoje, ele está bem longe de ser um mero telefone. Mas a denominação, mesmo agora inadequado, se perpetua. Além do antibiótico, injetaram um anticoagulante. Parece que virou tratamento de rotina para evitar alguns efeitos devastadores da COVID. A pressão, temperatura e pulso foram medidos e sempre com valores normais. Tomei banho. Depois veio o “café”: sopa, pão com geleia e queijo e banana da terra. Tinha café, manteiga, leite em pó e melancia. Não toquei neles. “Café” razoável. Estou bem. Um pouco cansado do ritmo e dos exercícios, legais, mas puxados para quem quase não faz exercícios. O pessoal do Hospital Português tem sido muito gentil e simpático. Vou ver se logo mais durmo. Estou com sono. Talvez leia um pouco antes de dormir. Muito obrigado pelas meias. Obs. Vocês leram o texto que mandei? Obs. Manuela enviou as fotos de Guile?

Dia 15 de maio de 2020 – sexta-feira

Bom dia para todos. Hoje não dormi tão bem quanto ontem, apesar das meias que dão um conforto e um bom calor aos pés. Talvez pelo aquecimento bom dos pés tenha achado que ia suar, mas isto não aconteceu. Foi apenas uma sensação. Fiquei com a boca seca, o que me levou a tomar muita água e, em consequência, ir mais ao banheiro e interromper o sono. Dormi das 8:30 às 9:30 horas quando a enfermeira veio fazer as medições de rotina e dar o antibiótico. Todas taxas normas. Depois acordei às 11:30 horas. Acordei meio assustado, sem ar e pedi para colocar o oxigênio. Não sei se por algum medo, não estava me sentindo bem. Foi uma sensação desagradável. Achei que podia estar piorando. Não gostaria de repetir esse episódio maio assustador. Com o oxigênio dormi mais legal. Acordei às 3 horas. Estou colocando todos estes horários, pois tem um relógio onipresente aqui que fica o tempo todo marcando, sonora e visualmente, o tempo. Ele me parece enorme, descomunal para o tamanho do quarto e da parece onde está, infelizmente, preso. Gostaria de dar liberdade ao relógio para ele ir em busca de alguém que precise ter horas.   Não sei que finalidade o relógio tem. Vou perguntar ao povo da saúde. O tempo já não passa no isolamento do hospital, ainda mais com tal relógio insistente. Impossível não ver, nem ouvir seu tic-tac irritante.

Creio que acordei mais uma vez, antes das 7 horas, quando a enfermeira veio medir novamente os dados e me dar o anticoagulante. Já estava me sentindo melhor. Dormi mais um pouco. Depois acordei bem disposto, foi escovar os dentes e ir ao banho.  Poucas vezes tenho tossido. Meu susto de noite, real ou imaginário, está bem superado pela boa disposição de hoje pela manhã e pelo fato de que todos as taxas das medidas de rotina estão normais: pressão, temperatura etc. Acho que é o relato que tinha. Espero que todos estejam bem. Vou precisar mesmo nas camisas de meia de manga curta, pois eu contava usar duas de manga comprida que trouxe. Com o acesso no braço para tomar o antibiótico, isto fica complicado, quando não inviável. Ainda não tomei café. Acho que ele chega às 8 ou 8:30 horas. Mas está tudo bem agora. Estou com boa disposição.

Linda, você pode falar sim. Mas não acho bom ficar falando no meio da noite, pois aí é que perco mesmo o sono. Quando acordo faço um esforço grande para dormir novamente, pois preciso repousar. Consegui fazer isto hoje, apesar do incômodo de acordar uma das vezes assustado. Claro que vou dizer tudo que ocorreu ao médico. Você se cuide. Tem que dormir bem e repousar. Aqui do quarto estou vendo que o dia está ensolarado. Que bom. Anima. O sol é um estimulante muito eficaz e belo. Desde que acordei estou sem o oxigênio. Decidi retirar o oxigênio. Ainda não falei com as enfermeiras. Fiquei muito preocupado como aquele negócio de ficar viciado em oxigênio. O bem-estar do oxigênio, que experimentei, parece que tem todo apelo para viciar. O café chegou. Vou matar a fome. Gentilmente a nutricionista retirou do meu menu, café, açúcar e leite e trocou por um suco. Vou ver o que faço para passar o tempo mais rápido. Vou ler e trocar mensagens. Talvez assim possa vencer este relógio onipresente.

Relato do dia de hoje: Passei todo dia ser usar o oxigênio canalizado. Foi tranquilo. Fiz fisioterapia pela manhã e à tarde com Laila, aquela fisioterapeuta que conhecemos e que trabalha na Casa dos Sócios do hospital. Todas as medições continuam dentro do normal. Não tenho febre. Pressão normal etc. Quando faço um esforço maior ainda sinto cansaço. Coisa da pneumonia. Ainda não tenho o resultado do teste da COVID. Gostaria de saber logo o resultado. A espera é difícil, mas não consigo esperar cantando, dada a situação angustiante. No almoço, frango, arroz, banana da terra, vagem, purê e mais gelatina de sobremesa. Comida honesta de hospital. Não é mal. Um pouco sem gosto. No almoço e no jantar, comida de hospital, honesta e meio insossa. Como falei, a nutricionista trocou o café, que não tomo, por suco. Bela gentileza. Vi uma mensagem com Guile na cozinha. Eu aqui com comida de hospital. Muito bom. Guile agora é chef. Gostei de ver e ler. A medicação continua com antibiótico, anticoagulante e outros. Fora isto recebi muitas mensagens e telefonemas de amigos, colegas e conhecidos. Bom falar com tantas pessoas. Faz o tempo hospitalar que sempre é tão longo passar de modo mais agradável. Estou bem disposto. Tenho dedicado pouco tempo para saber do pandemônio chamado Brazil, que quer destruir o Brasil. Sem novidades. Novidades só o desejo de poder voltar para casa.

Dia 16 de maio – sábado

Relatório da noite: Dormi bem hoje, apesar do badalar do relógio que marca incessante um tempo que parece não passar. Fui medicado às 21 horas. Temperatura, pressão e pulso normais. Tive vários sonhos. Um deles: Bolso caminha com dois seguranças. Depois tenta fazer um ridículo espetáculo de atleta se exercitando. As pessoas que estão vendo começam a gritar: fora, vai trabalhar e coisas do tipo. Não sou psicanalista para interpretar sonhos, mas creio que ele significa que estou lúcido e disposto. Como vocês podem ver acordei bem. O estranho é estar em um ambiente no qual cada entrada de pessoal corresponde a todo um ritual. Roupas, máscaras, luvas e mais roupas em várias camadas de roupas, depois sempre retiradas e enfiadas no lixo. Sei que é necessário, mas é um mundo estranho para se viver ou sobreviver. Fora tudo isto, tudo bem. Que o dia seja ensolarado para todos e para que o isolado frio hospitalar seja mais suportável. A gentileza do pessoal também ajuda, mesmo que os contatos sejam sempre rápidos e certamente cheio de medos. Esqueci de dizer que na noite, como no dia de ontem, não fiz uso do oxigênio canalizado. Acho isto bom. O sonho também foi bom. Todo mundo gritando contra ele. Os exames rotineiros de hoje de manhã foram todos bons. Comi banana da terra no pequeno almoço, como dizem os portugueses.

O médico esteve aqui agora. Pegou o exame da tomografia e vai mostrar para doutora Marta, pneumologista que está hoje no hospital. Outro pneumologista se chama Licurgo. Gabriel disse que ele vai conversar com doutora Marta. Amanhã ele me diz algo. Tive que parar a mensagem, pois chegou uma enfermeira. Ela mediu o oxigênio do sangue. Deu 96 a 98. Parece bem legal. Quando cheguei estava em 92 e na madrugada de ontem quando me senti o mal-estar também estava em 92. Acho uma boa notícia. Gabriel disse que ele acha que minha pneumonia é bacteriana. Ele depois pediu o CD do exame da tomografia do tórax. Doutor Gabriel me telefonou há pouco. Ele pediu para trazer todas as tomografias de tórax anteriores que eu tenha. Creio que tenho algumas. Estão na prateleira acima do computador, onde tem uma pasta verde. Vejam quantas tem. Podem ser todas. Eles querem comparar com a atual. Atenção, não é para deixar os exames em meu quarto. Eles devem ser entregues na enfermaria daqui. Vocês podem ver isto?

Que bom estas visitas mesmo à distância. Tiê, legal você ter deixado o CD na enfermaria e ter me visitado pela janela do outro lado da rua, em frente da Perini. Avise para eu abrir a janela. Bacana, agora estou te vendo. Mas não fique saindo muito de casa não. Veja a mensagem que mandei para o Bora Brasil. O médico veio. Veja lá tem boas notícias. O resultado do teste de COVID ainda não saiu. Creio que não. Com relação a necessidade de roupas é sempre difícil calcular, pois não tenho ideia de quanto tempo fico aqui. Por hora acho que não preciso nada. Preciso, antes de tudo, saber o resultado do exame. Isto me angustia. Sem saber dele, a vida fica em suspenso, sem nenhuma possibilidade de prever nada. Difícil viver ou sobreviver nesta dúvida.

Notícia maravilhosa. O teste de COVID deu negativo. É uma pneumonia não associada com o coronavírus. Nunca fiquei tão feliz em ter uma singela pneumonia. Gabriel ligou para me dar esta bela notícia. A alegria foi muita. Confesso que pensei algumas vezes, com apreensão e medo, que o resultado poderia ser positivo. Parece que estou agora em outro mundo, mesmo que permaneça no mesmo quarto de hospital na ala dos suspeitos. Agora sou um não suspeito na ala dos suspeitos. A felicidade é grande pela preocupação comigo e com os familiares, que compartilhavam esta inusitada e cruel experiência da quarentena. A alegria só não é maior porque estou imerso em um mundo que produz mortes em crescendo com a pandemia. Alegria e sofrimento de difícil compatibilização. Liguei imediatamente para todos da família. Felicidade geral com o fim da apreensão que tomava todos. Logo depois, outra boa notícia neste dia cheio de boas notícias. Vou mudar de ala e me despedir da ala dos suspeitos e doentes da COVID.

Enviei uma mensagem aos amigos, que acompanhavam também com apreensão minha situação. Colegas e amigos, contínuo internado no Hospital Português, agora no quarto 504, para tratar a pneumonia. Fui transferido para uma ala diferente daquela destinada aos suspeitos de estar com COVID. Apesar de ser ainda hospital, parece outro mundo, sem a parafernália necessária ao cuidado com o coronavírus.

Mudei para outra ala do hospital. Agora estou no quinto andar, quarto 504. Agora posso ter acompanhante e ser visitado. Mas disse a Tiê para ele ir para casa. Estou bem. Não tem sentido ele ficar aqui em um ambiente hospitalar, hoje perigoso para contágio. Além disso, a alegria de estar em outro hospital já é maravilha. Tive apenas um problema. O quarto melhor, maior e mais ventilado que o anterior, tem uma iluminação à noite forte. Gosto da noite escura, mas em lugar que desconheço, creio necessário ter uma pequena iluminação para se for preciso me levantar. Não posso deixar acesa a luz do banheiro, porque ela está conectada a um exaustor que faz muito barulho. Drama talvez de quem está feliz ou atento aos pequenos detalhes do mundo. O drama não me impediu de dormir o sono, ia dizer com um chavão, dos justos. Não se trata disto, apenas de um sono dormido na vida tranquila.

Dia 17 de maio – domingo

Dia do aniversário de Guile. Hoje ele faz 11 anos. Seria um dia para viver sem quarentena e sem hospital. Viver uma festa como ele sempre merece. Relato de mais uma noite: Sinto que estou em outro hospital. Foram-se os estranhos aparatos que envolviam seres humanos sempre amedrontados, explicita ou implicitamente. Seres generosos ao se dedicar aos possíveis infectados por uma doença pouco conhecida, mas de imensa capacidade virótica e destrutiva. A notícia do teste negativo de ontem me fez muito bem. Fugi do estado de apreensão e de preocupações comigo e com os que compartilhavam a quarentena comigo. Dura preocupação com o que pode acontecer em se contrair essa doença ainda cheia de desconhecimentos e perigos. Desde ontem e hoje estou bem mais leve. O “novo” hospital tem um efeito salutar. Dormi bem. Sinto que tive sonhos. Não sou capaz de recordá-los. Foram certamente sonhos bons de uma noite bem dormida. As medições de acompanhamento médico todas foram normais. Não usei mais oxigênio, nem senti falta de um oxigênio que dizem que vicia, dado o bem-estar que provoca naqueles que estão com dificuldade de realizar esse gesto tão trivial e vital como respirar. Estou novamente de bem com a vida neste país que parece de mal com a vida e os seres humanos.

Quando temos tempo – algo raro na vida que nos aprisiona – e, especialmente, quando vivemos alguma apreensão, ficamos bem mais atentos aos pequenos e importantes acontecimentos da vida. Hoje o café da manhã, basicamente igual dos outros dias de hospital, tinha um sabor muitíssimo especial. Era servido em pratos e com talheres não descartáveis. Creio que todos sabem como são difíceis de usar os talheres descartáveis, produzidos para durarem, quando muito, uma refeição. Eles fazem parte do capitalismo neoliberal de consumo, que fabrica produtos e seres humanos descartáveis. Vocês não sabem a boa sensação que é, depois de dias convivendo com os descartáveis também impostos pela pandemia, de voltar aos talheres e aos pratos de vida normal. Pequenas coisas que trazem grandes significados. Outra notícia maravilhosa. Vou continuar meu tratamento em casa. Hoje saio do hospital. Que alegria, ainda que tenha de cuidar do tratamento em casa.

Dia 18 de maio – segunda-feira

Dormi muito bem. Acordei há pouco. Estou me sentindo com boa disposição. Não tive suor noturno. Durante a noite acordei poucas vezes. Estou bem. Muito bom estar em casa, longe da COVID e do hospital.

Dia 19 de maio – terça-feira

Estou bem. Dormi bem. Tive um pouco de suor. Sem sintomas. Só algum cansaço em alguns esforços. Marquei com a pneumologista. A consulta possivelmente acontece amanhã. A secretaria ficou de confirmar hoje. Fiz poucos esforços maiores para ninguém reclamar.

Dia 20 de maio – quarta-feira

Hoje dormi bem novamente. Vou ver se confirmo a consulta hoje com a médica. Não deu. Marcou para a próxima segunda-feira. Vou ver isto. Gostaria rapidamente consultar um pneumologista. Não tenho COVID, mas tenho pneumonia. Preciso saber o que fazer.

Dia 21 de maio – quinta-feira

Ontem passei o dia bem e hoje dormi bem. Sem nenhuma novidade. Resolvi tentar outro pneumologista. Consegui. Hoje vou a uma cultura com um pneumologista no Centro Médico do Hospital Português, às 12 horas. Os corretores abusam. Trocar consulta por cultura me parece uma insensatez do computador. Talvez seja porque ele já sabe que escrevo muito e continuadamente a palavra cultura. Sensatez e percepção de computador. Estou no consultório no Centro Médico esperando ser atendido. Alguém sabe dizer se está chovendo muito na região de minha casa? Tentei falar com Linda e Manuela e elas não atenderam. Fico preocupado. O pneumologista dia que minha pneumonia não é bacteriana, nem virótica, mas uma inflamação entre tecidos do pulmão. Ele disse que não pode precisar a causa. Podem ser muitas: inalação de mofo e assemelhados, refluxo e outras bem diversas, como uma paciente dele, em que a pintura dos cabelos causava a inflamação. Ele passou remédios e exames, mas alguns procedimentos necessários a desvelar a doença não podem ser realizados por causa da COVID, que interdita alguns exames. Assim, meu tratamento será demorado. Vou tomar todos os cuidados com os possíveis infectantes. Desde a temporada de chuvas que inundou Salvador e trouxeram desabamentos, umidade, mofo e outros males mais, fico atento às fortes chuvas.

Dia 25 de maio – segunda-feira.

Dormi bem e estou indo agora fazer exames no Laboratório do Hospital Português. Fiz os exames de sangue, fezes e urina. Já voltei para. Marquei para fazer o ecocardiograma com Wladymir Machado na quarta-feira, às 15 horas. Aproveito e faço uma consulta com ele, que é cardiologista.

Dia 27 de maio – quarta-feira

Estou melhorando. Amanhã tenho exame e médico.

Dia 28 de maio – quinta-feira

Fiz o Ecocardiograma e tive uma consulta com Wladymir hoje à tarde. O exame deu tudo bem e Wladymir disse que os resultados do exame de sangue que ele havia pedido também estão bem. Resta acompanhar o tratamento do pulmão e esperar os resultados dos outros exames de sangue que fiz a pedido do pneumologista Octavio Messeder.

Dia 31 de maio – segunda-feira

O relato do tratamento não termina aqui. Continuo em tratamento. Mas a COVID-19 mais uma vez interfere na vida. Alguns exames requeridos para o tratamento não podem ser realizados por conta da pandemia. Faço os exames possíveis e devo ser acompanhado pelos médicos. Hoje é o possível.

Adendo

Desde antes da internação acompanhei muito apreensivo a luta de Muniz Sodré contra a COVID-19. Estive em uma lista de muitos amigos e colegas dele. Recebia notícias diárias da sua luta e todos buscamos passar o máximo de energia e pensamento positivo para ele. A situação dele esteve gravíssima. Duas vezes passou por UTIs. Mas venceu o terrível vírus. Depois de 40 dias internado felizmente teve alta. Foi ser tratado em casa, junto com Raquel. A lista se desfez. Todos muito felizes com o retorno de Muniz Sodré.

Em 16 de maio de 2020, no Hospital Português, escrevi um bilhete para um livro de desejos para a recuperação de Muniz Sodré.

Estimado Muniz,

Estou agora internado em um hospital com pneumonia e suspeita de COVID, ainda não confirmada. Estou bem na medida do possível. Fiz o teste e espero o resultado. Difícil imaginar o que você suportou desde sua internação. Se o mundo em que (sobre)vivemos hoje já é inusitado, o ambiente hospitalar com seres cheios de apetrechos e trocas de roupas a cada entrada no quarto amplia em muito a estranheza do mundo. Difícil imaginar sua dor e de todos os seus.  O novo coronavírus, este ser invisível e onipresente, na sua novidade carregada de incertezas, é assustador. Sua capacidade virótica de disseminação é devastadora. A apreensão e a angústia contaminam todos os seres humanos. Vivemos no Brasil uma tragédia ainda maior: a pandemia em conjunto com o pandemônio de um irresponsável genocida, que despreza a vida de seres humanos. Você, com sua coragem e força, sobreviveu e viveu sofrendo momentos tão difíceis. Você mobilizou todas suas energias e as energias de uma imensa corrente de amigos, colegas, alunos e admiradores, que você cultivou com seus gestos e suas ideias instigantes, com sua paixão de professor de muitos saberes: acadêmicos, espirituais, populares, tradicionais e contemporâneos. Estamos todos felizes de poder novamente estar com você, compartilhar suas emoções, seus pensamentos, suas lições de vida e de conhecimentos múltiplos.

*Albino Rubim é pesquisador em políticas culturais. Atualmente professor do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (UFBA). 

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