Trinta dias de festa: o mês mais esperado

Por Gleise Oliveira

É assim no meu nordeste. Chegou o mês de junho. Queria pensar apenas nos festejos juninos. No “dois pra lá, dois pra cá”. Dançar agarradinho. Decorar a casa. Planejar as comidas, viagens, shows de praças cheias de alegrias, encontros, gente. 

Chegou o inverno no lado de cá. O nosso sertão é de calor e sol, mas também de frio na sombra. Nosso inverno é de madrugadas com baixas temperaturas, não tem neve, não tem velho barbudo natalino. 

Chegou a metade do ano. Queria pensar nos trinta dias de festa em homenagem aos santos Antônio, João, Pedro, Marçal (e qualquer outro que queira dançar junto) e em devoção ao profano.

Chegou o mês mais esperado. No meu nordeste e nas minhas memórias é assim. E muitas, quase todas, cidades da Bahia (e dos outros estados da irmandade) se vestem para a festa. As rodovias ganham movimento. Nas rodoviárias muitos encontros e uma disputa saudável pelo “melhor São João”. 

São os meses mais frios, mas queria lembrar do fogo da juventude, não só das fogueiras, mas daquele rebuliço que dava na gente na hora de se arrumar para a festa. Lembrar das paqueras, dos belos moços e das grandes rodas com espaço demarcado pelos vizinhos que iam se encontrar na rua. Os territórios demarcados para os encontros. Queria ter tirado os agasalhos do armário. E na hora de ganhar a rua lembrar de levar o casaco para aquecer a noite. Mas bom mesmo eram os olhares e beijos para aquecer o coração.

Tenho mesmo vivido de memórias, mas chegou o mês do santo casamenteiro. São os primeiros treze dias de oração, devoção, cantoria. E vale até castigar o santinho para ver se chega o tão sonhado casamento. 

As cidadezinhas todas em movimento. Queria acompanhar a banda que arrasta pelas ruas e entrega em casa os bebuns do fim de festa, cambaleando e sem controle do próprio corpo. Tenho vivido de memórias e queria no íntimo ver o raiar do sol atrás da banda. 

Está tudo frio mesmo. Nem a paquera para aquecer. O contato e calor humanos estão desestimulados. As relações sociais estão frias e mediadas. Não terá o som da sanfona na sala de reboco, na tapera ou na calçada. O licor está curado, mas sem causar ressaca. O milho pode virar canjica, mingau, pamonha, ou só esturricar numa fogueira solitária. Não tem quem pule a fogueira, ou a melhor fogueira a se pular é a da morte.

São João, o Batista, nasceu. Não, não acendam fogueiras para anunciar a chegada dele. Não queimem mais troncos para aquecer do frio. Muitas vidas estão queimando. Nossa amazônia está em chamas. Não acendam fogueiras e dessa vez não é pelo cheiro de fumaça que deixariam nas minhas roupas. O cheiro já característico das fogueiras é o cheiro de saudade. É também o cheiro que dançaria a noite inteira no sereno, na chuva fina e roçaria no outro até aquecer, amanhecer.

Não, por favor não dificultem a respiração. Mesmo que para isso a tradição seja sufocada. Lá se vai mais um ano sem bandeirolas se movimentando, dançando no ritmo dos ventos. Coloridas feito a chita, a barra da saia, o entardecer do sertão.

As armas dos espadeiros da Gamboa foram proibidas. Eles não estavam armados, era só brincadeira de São João. Nenhum cavaleiro poderá vestir-se e arrastar seu bocapiu. O olho viu, mas a boca … piu. Silenciou o descaso com nossos dias de festa. Dona Nair, faz muito tempo, não provoca os tocadores de bombas, chuvinha, cobrinha…deu xabu no São João.

O acordeon não fez acordo. Não acordou nosso povo e as escolhas políticas silenciaram o tempo das festas. Ainda estamos em luto, mesmo que a morte esteja cada vez mais banal.

São Pedro, abra as portas do céu, para os que foram e não puderam mais aqui fazer a sua festa. 

São Pedro, descansa um pouco, intercede pelo nordestino que tanto labuta. Não deixa a fé ir junto com tanta gente que tem ido. São Pedro, olha para nossas viúvas. Os homens têm vivido em guerra. E nem é a Guerra de Espadas. Essa está perseguida.

A chama de pólvora brincante não tem espaço. A guerra é real e de bala de fogo na cabeça. O Estado mata. A guerra é sanitária. O vírus está no ar. Ele invade, se aloja sem pedir licença. Descansa um pouco, São Pedro! Erra o chaveiro e tranca a porta, dá um tempo, já somos muitos em festa aí no céu.

Nem os tocadores entram em casa sem permissão, sem uma boa comida e bebidas típicas. Os tocadores pedem licença e entram pelas portas abertas. Mas neste ano não entraremos de casa em casa. Não terá a disputa do melhor licor, milho, amendoim, quentão.

São Marçal vai continuar desconhecido, ou conhecido de poucos. De todo modo, se achegue logo, chegue rápido para fechar o mês. Preserve virgens matas, virgens moças, mandacarus floridos e cheios de esperança. Quem sabe assim a liberdade brasileira fica mais próxima. O sol vai nascer no 2 de julho e vai brilhar a esperança do despotismo não orientar mais a nossa nação. 

*Gleise Oliveira  é uma foliã apaixonada pelos festejos juninos. Pesquisou festas juninas na graduação em Produção Cultural na UFBA. Leia a monografia aqui. É Mestra em Cultura e Sociedade (Pós-Cultura/UFBA), possui MBA em Gestão de Projetos (UNIFACS) e graduação em Comunicação Social (UFBA). Pesquisadora do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (CULT/UFBA), se dedica ao tema da gestão e políticas culturais. Atualmente é bolsista FAPESB no curso de Doutorado em Cultura e Sociedade (Pós-Cultura/UFBA).                 

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