Água, para todos?

Por Gleise Oliveira*

Me deparei com um carro pipa.

Das memórias do sertão guardo a escassez de água. Os tempos de seca sempre foram noticiados pelas misérias que os acompanhavam. Um dos ensinamentos dos mais velhos diz que a água é um recurso natural que não devemos negar a nenhum ser humano.

Na televisão, as notícias sobre a seca dizem sobre a impossibilidade de plantio e colheita e a fome. A exposição de humanos desumanizados, destituídos de dignidade. A água é matéria prima para tudo. É também uma necessidade básica para alimentação e para possibilitar hábitos de higiene.

Nos livros de geografia, as informações sobre vegetação, os sofridos biomas do cerrado e da caatinga. O êxodo e migração transformados em canções são também resultado da seca, que vira poesia. Mas a dor do poeta está no cinza da paisagem, nas plantas fúnebres, nos animais mal tratados pelo calor e também pela falta de alimentação e água.

Lembro do carro pipa na rua de vó. Eram filas dos vizinhos que pegavam todo tipo de recipiente para guardar água que seria utilizada nos mais diversos tipos de consumo. Eu, na minha infância, exercia o papel de pegar a minha água no balde (proporcional ao meu uso).

É decisivo ter água como riqueza e possibilidade de vida. O corpo humano tem 70% de água, o planeta Terra é também, em sua maior parte, água. Mas nem toda água está disponível para consumo. Boa parte congelada, outra parte poluída, outra salgada nos mares e oceanos.

Por falar em água salgada, lembro de quando estive em Cabo Verde, um arquipélago formado por 10 ilhas. A própria definição de ilha já nos situa que se trata de um pedaço de terra rodeado por água, definição que me recordo também das aulas de geografia. E o que me fez lembrar da terra do Mario Lúcio foi a dessalinização da água para consumo. O país, ao que me parece, importa quase tudo quanto é necessário à sobrevivência e, mesmo após a sua independência de Portugal, continua tendo na antiga metrópole um importante parceiro comercial. Mas a água, tão essencial e escassa, passa pelo processo de extrair o sal e ficar própria para o consumo humano.

Eu vi um carro pipa. Mas o carro não voa feito as pipas dos meninos. Ele vai vagaroso, carregado de vida. Eu que guardo tantas memórias em mim.

Eu vi um carro pipa. E, estando na pandemia mesmo querendo fugir dela, pensei em toda dificuldade que é se ter água, água potável, água limpa para proporcionar a higiene, o lavar as mãos, o banho, o alimento.

E não seria eu se não conectasse também com a política. Lembrei da transposição do rio São Francisco, acho que porque estou agora bem perto dele. São lembranças da casa de vó.

E a água é para todos? Pensei nas cisternas, nos poços, nas políticas públicas de um tal presidente que entendia bem da seca, acho que pelas próprias memórias. Pensei nos caminhões pau de arara… não estão tão distantes de nós. Não faz tanto tempo. Eu vi um carro pipa e ele me fez voar para tantas conexões possíveis dentro e fora do meu sertão.

Olhei para o mandacaru verde e amarelo e encontrei o azul do caminhão pipa. As cores da bandeira do país. As cores que lembram conflito e guerras ideológicas tão atuais.

A paisagem do sertão me trouxe o oposto da guerra. A tarde ficou suave. Temos água! Mas quantos não a tem para o mínimo? Lembrei da frase que repetimos em nossa casa quando queremos alertar as crianças sobre o uso consciente de água: “não vamos acabar com a água do planeta”.

Levantei da cadeira de balanço e fui tomar um café. Um entardecer com ventos frios anunciam que tem chuva no sertão. O milho já foi plantado, o feijão também. E que venham as águas necessárias para manter uma boa colheita.

Eu vi o carro pipa. E ele foi abastecer outras vidas.

Gleise Oliveira é Mestra em Cultura e Sociedade (Pós-Cultura/UFBA), possui MBA em Gestão de Projetos (UNIFACS) e graduação em Comunicação Social (UFBA). Pesquisadora do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (CULT/UFBA), se dedica ao tema da gestão e políticas culturais. Atualmente é bolsista FAPESB no curso de Doutorado em Cultura e Sociedade (Pós-Cultura/UFBA).

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