As fake news da mídia corporativa

Por Dante Lucchesi*

 

Em editorial do dia 28 de agosto de 2020, o jornal O Globo clama para que a 2ª turma do STF não reconheça a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro, nos seus julgamentos contra o ex-presidente Lula, para, segundo o editorialista, manter “a capacidade do Estado e da sociedade de enfrentar com a necessária energia a corrupção em suas diversas formas e estágios”. Porém, mais do que manter o combate à corrupção, esse editorial está mais preocupado em manter um judiciário partidarizado, a serviço do grande capital. As mensagens entre Moro e os membros da Lava Jato publicadas pelo portal The Intercept revelaram claramente um juiz parcial, que combinava e orientava os atos da acusação, em um conluio inadmissível em qualquer sociedade civilizada, regida pelo estado democrático de direito. Além disso, Moro cerceou a defesa e ignorou 73 testemunhos que negavam a acusação. A imensa maioria dos juristas brasileiros reconhece a parcialidade de Moro. E grandes juristas internacionais já se pronunciaram claramente sobre os abusos cometidos por Moro, comprometendo irremediavelmente a legitimidade do seu julgamento.

Mas, com desfaçatez, o editorial ainda afirma: “Não se deve esquecer o sólido conjunto de provas contra o ex-presidente”. Trata-se de um exemplo evidente de fake news. Não é à toa que os bolsonaristas têm se aproveitado da falta de credibilidade da Globo, para propagar suas fake news. Ao manipular de forma tão grosseira a informação, as organizações Globo só se desmoralizam, e a desmoralização do maior veículo de comunicação do país só favorece o império da pós-verdade.

O que não existe na condenação de Lula são provas! A dificuldade do ex-juiz Moro com as provas já se tornou proverbial. Lula foi condenado por “ato indeterminado” de corrupção, com base no recebimento de vantagens indevidas. E que vantagens são essas? Um apartamento (o famoso triplex) que nunca foi de Lula, que Lula nunca usou e só visitou uma vez, pois tinha a intenção de comprá-lo. Esse triplex foi oferecido como garantia de uma hipoteca pela sua verdadeira dona, a OAS. Mas Moro revogou esse ato, para que a realidade se ajustasse à sua sentença, já que sua sentença não se ajustava à realidade, numa absurda inversão da lógica mais elementar.

Em matéria de absurdos lógicos, a Globo não está sozinha. O Estadão que “coincidentemente” publicou, no mesmo dia, um editorial defendia o lawfare da Lava Jato contra o ex-presidente Lula, tem em seus quadros a jornalista Vera Magalhães, que também é apresentadora do programa Roda Viva, da TV Cultura. Recentemente Vera Magalhães ofereceu ao país este primor de lógica, em uma pergunta feita na entrevista de Fenando Haddad, nesse programa: “Lula já foi condenado em três instâncias. O PT não está negando a realidade, ao defender sua inocência?” Ora, Lula foi condenado sem provas, por um “juiz”, escandalosamente parcial. Sua condenação foi ratificada por um Tribunal de exceção, o TRF-4, que se tornou uma espécie de chancelaria da Lava Jato. E julgou e condenou Lula em poucos meses, enquanto um processo tão grave como o incêndio na boate Kiss, que matou 242 pessoas e feriu 680 outras, em 2013, continua lá parado. E por fim, foi ratificada no STJ, cujo presidente recentemente deu o benefício da prisão domiciliar à esposa do famigerado Queiroz, que estava foragida, em uma decisão absurda (condenada quase que unanimemente por respeitáveis juristas), para agradar ao presidente fascista e genocida e tentar garantir sua indicação ao STF.

Em um sistema de justiça que funciona, é preciso ter a culpa provada para ser condenado, tendo como base o princípio inviolável da presunção da inocência. Tomar a condenação como prova da culpa é uma inversão total e evidente da lógica, mas isso certamente escapa a capacidade intelectual de compreensão da “jornalista” Vera Magalhães e dos editorialistas do Globo e do Estadão, que, por estupidez, ou má fé, repetem essa estultice de que Lula é culpado porque foi condenado.

A mídia corporativa procura manter a hegemonia do discurso da Lava Jato; hegemonia construída por essa mesma mídia, usando a tática nazista repetir mil vezes uma mentira para torná-la verdade. Só que esse discurso, que visava a massificar o estereótipo do PT como partido corrupto, acabou por criminalizar toda a política e criar um sentimento no eleitorado de que era possível atropelar a lei e a constituição para livrar o país da grande praga da corrupção. Esse sentimento foi o terreno fértil para a eleição, em 2018, de um sem número de justiceiros e outsiders da política, com os títulos de juiz, delegado, bombeiro, ou as patentes de capitão, subtenente, major, coronel et caterva. Fazem parte desse imenso conjunto de aberrações, que, desde então, coalham a política nacional, Jair Bolsonaro e Wilson Witzel. Este último eleito na esteira do bolsonarismo e do lavajatismo, como um dos paladinos do combate à corrupção.

Duas passagens ilustram o clima de luta contra a corrupção a qualquer custo, criado pela Lava Jato, que possibilitou a eleição de Bolsonaro e Witzel. Numa corrida de Uber na época, questionei a candidatura de Witzel, pela sua evidente falta de experiência e capacidade para ser governador, e o motorista do Uber me respondeu: “pelo menos, ele é juiz”. E antes do debate com Eduardo Paes, seu adversário no segundo turno, Witzel teve a insolência de declarar que, se Paes mentisse no debate, ele lhe daria voz de prisão. Witzel se elegeu por conta desse ambiente policialesco, autoritário e fascista, criado por Moro, Dallagnol et caterva e massificado pelos oligopólios midiáticos.

Por seu despreparo, falta de visão política e oportunismo, Witzel rompeu com Bolsonaro, o que fez com que a pesada mão da justiça bolsonarista do Rio de Janeiro se abatesse sobre ele, afastando-o do cargo sob acusação de corrupção. A crítica à arbitrariedade contra Witzel cometida pelo mesmo ministro do STJ, que tem favorecido Bolsonaro no caso das rachadinhas, não significa ser conivente com a corrupção do Governador do Rio, que já conta com robustas evidências. Só que a história recente do país ensina que atropelar a lei para combater a corrupção só deteriora o sistema de justiça, comprometendo o estado de direito, e renova o plantel de corruptos em ação. Saem as velhas raposas e entram corruptos rastaqueras e mequetrefes, como Bolsonaro, ou atabalhoados e espalhafatosos, como Witzel. Os grandes justiceiros e paladinos do combate à corrupção, eleitos em 2018, estão se revelando corruptos de quinta categoria e péssimos governantes, como Bolsonaro, que tem levado país ao maior desastre ambiental, social e político da sua história, além de desmoralizar e tornar o Brasil um pária no cenário internacional.

O Globo e o Estadão têm-se colocado como oposição a Bolsonaro, mas, ao tentar manter vivo o discurso da Lava Jato, ao qual têm o rabo preso, por terem construído sua hegemonia na sociedade, esses grupos midiáticos só mantém a ideologia e o sistema político que possibilitou a ascensão do Bolsonarismo. Desarticular o “partido do judiciário” (que hoje se divide entre bolsonarista e lavajatistas), a começar pelo seu grande expoente, a Lava Jato, é condição sine qua non para recuperar o estado democrático de direito e a vitalidade da política, sem o que não será possível superar o bolsonarismo e tudo de ruim que ele representa.

 

* Dante Lucchesi é Professor Titular de Língua Portuguesa da UFF, Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Língua e Cultura da UFBA e autor do livro Língua e Sociedade Partidas (Contexto, 2015), que foi contemplado com o Prêmio Jabuti em 2016.

 

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