Brasil – a zona cinza

Por Rosemberg Cariry*

Primo Lévi, escrevendo sobre a situação limite dos campos de concentração, quando é abolida a perspectiva de futuro, fala da zona cinza. Nessa condição, os valores civilizacionais são esquecidos, o mal toma aspecto de normalidade, os prisioneiros se submetem às situações mais absurdas e são hostis entre si, numa luta insana, sem ética e sem piedade, que lembra o absurdo kafkiano. Diferenciando-se do modelo concentracionário nazi, o fascismo derivado do capitalismo neoliberal tem uma capilaridade destrutiva, capaz de jogar uma nação inteira na zona cinza da bestialidade. Quando o incêndio das florestas, a matança de índios, de negros, de pobres e de lideranças sociais; a entrega de todos os bens nacionais e a substituição da soberania pela submissão a países hegemônicos, a destruição da cultura e da educação já são rotinas tidas como normalidades, sob aplauso ou impotência das massas bestializadas, estamos diante de uma catástrofe humanitária de grande proporção.

Os que são insubmissos e se recusam a aceitar a naturalidade do autoritarismo (em suas velhas e novas formas), vivem o cerco da banalidade do mal e da angústia mais profunda. Os que não suportam a situação e fogem do país são penalizados pelas dúvidas, saudades e duras condições de recomeço que encontram em um mundo estrangeiro. A melhor opção talvez seja mesmo ficar e lutar. Ficar e denunciar. Ficar e ajudar na construção do futuro e da esperança. Sabendo que, antes de tudo, o maior projeto é manter a sanidade mental. Afinal, o pior do neofascismo é fazer as pessoas destruírem-se a si mesmas. É preciso não dar ao tirano de plantão, o prazer de nos ver cair pela depressão ou pela desesperança. A dignidade humana é uma construção e o amanhã se faz das luzes que conseguirmos acender nessa escuridão. Se nenhuma luz for acesa, então é hora de partir, sem remorsos e sem olhar para trás, para que não se transforme o retirante em uma estátua de sal, como a mulher de Ló.

Rosemberg Cariry é cineasta

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