O caráter democrático da Folha de São Paulo

Por Dante Lucchesi*

Folha de São Paulo, com justiça conhecida na Internet como a Falha de São Paulo, revelou todo o seu caráter antidemocrático e antipopular, na frase com que fecha seu cretino editorial “Jair Rousseff”. Eis a pérola do editorialismo nacional: “Ao final, os mais prejudicados serão, como de hábito, os pobres e miseráveis, que por inconveniência política constituem também a parcela mais decisiva do eleitorado”.

A frase começa com a trivial demagogia ideológica de afetar uma preocupação com os mais pobres, quando isso é o que menos importa ao jornal. Mas o fecho é que é um primor de profissão de fé. No país mais desigual e cruel do mundo, os pobres e miseráveis constituem a maioria da população. E em um regime democrático, a maioria é decisiva. Mas como é que os democratas de balcão da Falha de São Paulo definem isso? Uma “inconveniência política”. Que vergonha hein, Folha! Que cinismo! Que estorvo, que inconveniência ter essa maioria de pobres e miseráveis votando e decidindo as eleições, não é? Daí para propor a restrição do voto por renda, como no tempo do império escravocrata, ou da Velha República dos latifundiários, é um passo.

Com esse editorial moralmente indigente, a Folha de São Paulo se reconcilia com seu passado, quando sedia seus furgões para a Oban sequestrar, torturar e matar os opositores da ditadura militar. Ditadura, que foi apoiada pelo empresariado nacional, que apoiou também o golpe de 2016, e optou por um miliciano fascista em 2018, e promoveu agora um pacto para manter no poder o presidente mais inepto e genocida. E os empresários que financiavam o terrorismo assassino da Oban são da mesma estirpe dos que financiam hoje a indústria de fake news do bolsonarismo.

Folha de São Paulo é apenas um instrumento de manipulação da informação à serviço dos interesses desses empresários e do grande capital financeiro, o qual o Grupo UOL também integra através do PagSeguro. Por isso a Folha criticou o concorrente PayPal, que bloqueou o guru do bolsonarismo, o astrólogo Olavo de Carvalho, porque este incita o ódio e dissemina a mentira nas redes sociais. A Falha defendeu o princípio do capital sem ideologia e sem princípios morais, que deve receber e faturar independentemente de onde o dinheiro venha. Ao se alinhar com a miséria ideológica e moral do capitalismo, a Folha foi mais honesta. Mas como honestidade não é o seu forte, essa defesa veio na forma de uma matéria apócrifa, travestida de mera notícia.

Haveria um claro conflito de interesse entre um jornal que se pretende independente e a voragem comercial do grupo financeiro que faz qualquer negócio. Mas na verdade o que há é uma total convergência de interesses, quando uma empresa capitalista de imprensa, que manipula a informação para servir aos interesses do capital, faz parte de um grupo financeiro que não se recusa a prestar serviços para criminosos, desde que fature com isso.

Folha de São Paulo não tem qualquer isenção, e o seu compromisso democrático é tão ridículo quanto sua canhestra campanha “democrática”, baseada no insosso bordão “vista-se de amarelo” – tão pálido e insosso quanto o espírito democrático da Folha, que não se furta a entrar no pacto que se articulou, com a liderança do desprezível FHC e o “impoluto” Temer, para manter Bolsonaro no poder, porque o miliciano fascista é a melhor opção para o grande capital no momento.

Folha, a Globo, o Estadão, a Veja, o SBT, a Record, toda a mídia corporativa não se incomoda realmente com o fato de Bolsonaro destruir a Amazônia, exterminar os povos indígenas, promover o genocídio de mais de cem mil brasileiros, atacar violentamente a cultura, a ciência, a universidade pública e manipular a PF, a PGR e o MPF para manter impunes a corrupção de sua família, no esquema da rachadinha, e suas ligações com as milícias, ou seja, com o crime organizado. Essas empresas já embarcaram no grande pacto para manter Bolsonaro, porque seu ministro da economia, o repugnante Paulo Guedes, serve com cinismo e despudor ao grande capital, acima de tudo, de todos, do Brasil e de Deus também. Mas essas empresas estão cobrando a conta, querem reforma administrativa, querem reforma tributária, querem tudo o que transfira o dinheiro público dos serviços sociais para fazer a festa e a orgia do grande capital financeiro. E não aceitam que Bolsonaro, por demagogia, populismo e oportunismo, encampe programas sociais (mudando o nome é claro), para garantir sua reeleição. E o indigente editorial “Jair Rousseff” nada mais é do que uma defesa apaixonada da nefasta PEC do fim do mundo, aquela que congela os gastos públicos com saúde, educação e programas de investimento e distribuição de renda, para garantir a solvência do Estado brasileiro perante o capital financeiro nacional e internacional.

Contrariando a lógica e a inteligência mais elementares, o editorialista da Falha afirma que, se Bolsonaro transferir o dinheiro destinado ao pagamento dos bancos para os programas de distribuição de renda que beneficia pobres e miseráveis, estes, os pobres e miseráveis, serão os maiores prejudicados. Quem é capaz de praticar esse tipo de impostura intelectual, é moral e ideologicamente desprezível. E para gente assim, o fato de a maioria da população do Brasil, formada por pobres e miseráveis, ter potencialmente um peso decisivo nas eleições é uma enorme inconveniência política. Eis o caráter democrático da Folha de São Paulo!

*Dante Lucchesi é professor titular de Língua Portuguesa da Universidade Federal Fluminense

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