Cultura, centralidade e transversalidade

Por Antonio Albino Canelas Rubim *

Hoje um dos desafios primordiais das políticas culturais é alcançar centralidade no âmbito do governo, seja ele nacional, estadual, distrital ou municipal. Não obstante, a busca da centralidade, na maioria das vezes, não passa de um desejo sempre reivindicado pelo campo cultural, sem acolhimento substantivo em outras áreas e poucas vezes viabilizado nas gestões governamentais. Aparecem inclusive dúvidas sobre a pertinência de recorrer à noção de centralidade para conquistar maior espaço nos programas e na atuação dos governos. Esse texto pretende sugerir algumas trilhas de enfrentamento da questão, ainda que não exclusivas, devido à complexidade do problema.

A adoção do conceito ampliado de cultura, no mundo a partir da Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais, organizada pela Unesco na cidade do México (1982), e sua afirmação no Brasil desde Gilberto Gil no Ministério da Cultura (2003-2008), coloca em cena novas possibilidades e dificuldades para a discussão da centralidade. O universo da cultura se alarga bastante e com ele as potencialidades e as dificuldades do imprescindível enfrentamento da questão da centralidade.  

Isaura Botelho chamou atenção para as dificuldades de implantar políticas culturais baseadas em uma concepção antropológica da cultura. Normalmente as políticas culturais se voltam para a cultura em registros mais delimitados, que a autora nomeia como parâmetros sociológicos. A envergadura da noção antropológica impõe, conforme a autora, que as políticas de cultura não possam ficar restritas aos órgãos específicos da área. A noção ampliada demanda uma atuação mais plena e integrada do governo. Desse modo, tais políticas para serem efetivadas necessitam ocupar alguma centralidade no governo.

A questão de como conquistar centralidade para a cultura e as políticas culturais, quase sempre jogadas para posições secundárias como soe acontecer, floresce como vital para o campo cultural e para as políticas públicas de cultura, em especial, na conjuntura político-ideológica-cultural em que vive o Brasil, submetido ao governo autoritário e ultraneoliberal, que desencadeou uma guerra cultural, na qual a destruição da cultura democrática se combina com a imposição de uma cultura autoritária, contrária à diversidade cultural e social brasileira. Apostar na ascensão fantasiosa de algum governante/governo sensível, como por vezes imagina o meio cultural, não parece atitude sensata para enfrentar o dilema. Cabe sugerir alternativas, menos passivas e mais ativas, para equacionar bem o problema.    

A noção ampliada de cultura para sua efetividade em políticas culturais exige o acionamento e a potencialização da transversalidade como componente da cultura e das políticas culturais, sob pena de se viver uma esquizofrenia entre a narrativa, que reivindica o conceito ampliado, e a prática, que não consegue tornar tal discurso realidade. Assim, o recurso à transversalidade emerge como fundamental neste cenário. Mas a transversalidade não é nenhuma porção ou termo mágico, que resolve toda complexidade envolvida na questão da centralidade.  

A transversalidade pode ser uma das alternativas junto a diversas outras possíveis a serem inventadas. De imediato, torna-se necessário reconhecer a transversalidade como intrínseca à própria cultura. Historicamente composta por setores diferenciados e com alta tendência à dispersão, a cultura precisa acionar a transversalidade para conformar sua completude, enquanto campo articulado. A cultura não só se compõe de áreas e linguagens específicas, mas está organizada, quase sempre, em lógica setorial, com entidades representativas que reivindicam políticas setoriais de cultura, por vezes, tensionando outras áreas da cultura ou até mesmo o campo cultural em sua totalidade. 

Nessa perspectiva, as políticas transversais voltadas para o próprio meio cultural emergem como essenciais para tecer e consolidar o campo da cultura. Tais políticas são traduzidas em conferências, programas, projetos e outras modalidades integradoras, que não podem ser mera conjunção de políticas setoriais de cultura, mas efetivas políticas transversais para contemplar e articular o ambiente cultural. O Programa Cultura Viva aparece como um bom exemplo de política transversal no interior da cultura, acolhendo de maneira vistosa e vigorosa as mais diversificadas áreas e linguagens culturais. Isto não significa que ele não mereça aprimoramentos na perspectiva de maior diálogo entre as áreas culturais envolvidas.          

A transversalidade não pode ficar restrita apenas ao próprio âmbito da cultura. A noção ampliada de cultura exige mais transversalidade, inclusive na fundamental interlocução da cultura com outros campos sociais e de governo. Para fomentar políticas públicas de cultura substantivas, a transversalidade deve perpassar os mais diferenciados universos sociais, em especial aqueles mais afins à cultura, como educação e comunicação, que podem e devem ser concebidas como modalizações de transmissão e de difusão da cultura. A inexistência de transversalidade entre políticas culturais e políticas de educação e de comunicação fere em profundidade o alcance da atuação das políticas culturais, reduzindo de maneira drástica sua potência na contemporaneidade. No século XXI, as políticas culturais ficam vivamente comprometidas em sua atuação se não dialogam transversalmente com a educação e a comunicação. Os ricos elos transversais entre essas áreas são imprescindíveis para as políticas culturais na atualidade e para a construção de sua centralidade.       

A demanda da transversalidade não pode se restringir aos registros dos campos afins. Ela pode e deve abranger múltiplos espaços da sociedade e do governo a fim de que as políticas culturais abarquem rigorosamente a cultura em sua noção ampliada. Dessa maneira, a busca contínua e incessante da conexão com outros campos sociais torna-se programa de trabalho. Nada casual que na gestão da Secretaria Estadual de Cultura da Bahia, nos anos 2011-2014, um dos cinco eixos programáticos fosse a transversalidade das políticas culturais. A atitude, ainda que não formulada em sua plena consciência, permitiu enlaces transversais como inúmeros órgãos e instituições de uma diversidade de ambientes, além da educação e comunicação, tais como: turismo, combate ao racismo, mulheres, economia, segurança pública, trabalho e emprego, planejamento, saúde, direitos humanos, administração, justiça, casa civil, etc.

A transversalidade fortalece a cultura por meio de sua disseminação negociada nas políticas setoriais de governo, pela conquista de aliados, por meio do alargamento do diálogo com a sociedade e no interior do governo, pelo intercâmbio de expertises, pela realização de projetos compartilhados, pela viabilização de recursos e pela presença mais constante e visível da cultura na agenda geral do governo, assumindo o trabalho político de construção de uma centralidade, em termos de efetiva inserção na política estratégica do governo. 

Entretanto, cabe lembrar também das ameaças contidas da transversalidade. Perigos e riscos habitam as relações sociais e institucionais. A transversalidade para ser benéfica precisa permitir ganhos reais para todas as áreas envolvidas. Daí a imperiosa necessidade de diálogos, negociações e pactuações democráticas para conformar transversalidades consistentes. Em certos casos, pelo contrário, pode acontecer a instrumentalização de um campo por outro. Nessa circunstância, a tentação do poder leva a subsunção e negação das políticas de um campo específico em detrimento de outro. Ao invés de políticas culturais compartilhadas, o que se tem é a negação das políticas culturais, pois eles requerem sempre alcançar finalidades culturais por meio da política. Quando a cultura se encontra usada somente com outros fins, as políticas culturais entram em colapso. Todos os possíveis ganhos da transversalidade são aqui negados de modo peremptório.                        

Afirmado o papel essencial da transversalidade seja na conformação mesma do campo da cultura e suas políticas culturais, seja em seu diálogo vital com outras áreas sociais para a construção conjunta de políticas públicas e para a potencialização das políticas culturais, cabe retornar ao tema da centralidade da cultura. Ele agora emerge adensado com a presença vigorosa das diversas transversalidades tecidas de modo compartilhado, para propor uma redefinição, algo radical, do próprio entendimento da noção de centralidade. 

Normalmente centralidade da cultura é entendida, de modo simples e quase imediato, como dotar a cultura de prioridade frente a outras áreas. Tal demanda se inscreve em uma lógica competitiva e não colaborativa. Melhor imaginar uma alternativa possivelmente melhor e mais viável. A proposição é traduzir centralidade em outro horizonte político. Não como prioridade desejada e disputada, mas como inserção efetiva e bem situada da cultura no programa e na agenda de atuação do governo. Para isto não cabe apenas buscar a sensibilidade do governo/governante ou o efetivo compromisso programático do partido com a cultura no programa de luta por uma sociedade radicalmente democrática, mas colocar na agenda política dos agentes político-culturais a construção transversal do próprio campo da cultural e das políticas culturais, bem como a construção transversal de parcerias sociais e de governo entre a cultura e as políticas culturais com os mais diversos campos sociais e áreas de governo. Nesta perspectiva, a transversalidade, superados seus riscos, pode ser traduzida como construção da tão desejada e vital centralidade da cultura.

 

*Albino Rubim é pesquisador em políticas culturais. Atualmente professor do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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