Por Antonio Albino Canelas Rubim*
Nada surpreendente as recentes revelações jornalísticas, que têm vinculado o chamado Gabinete do Ódio ao Palácio do Planalto. Tais conexões resultam coerentes com o longo processo de acionamento e construção do ódio desenvolvido no Brasil desde, pelo menos, de 2005. Este processo de 15 anos, como nunca, sedimentou o ódio no cenário político e, a partir de 2019, instalou o ódio no cerne do governo federal. Emblemático recorrer a expressão Gabinete do Ódio para designar o ponto de chegada do fazimento, que viabilizou a extrema-direita ocupar o poder federal, com seu culto ao ódio, estímulo à violência e projeto de implantar mais uma ditadura no Brasil. Cabe tentar desvelar, mesmo parcialmente, a genealogia do mal.
O ódio não poder ser, infelizmente, desconsiderado no cenário político nacional. O Brasil é uma sociedade perpassada pelo autoritarismo estrutural, mesmo nos intitulados períodos democráticos. Tal violência deriva de diversas raízes. Nelas possuem lugar de destaque: os quase 400 anos de brutal escravidão, que perfazem aproximadamente dois terços da vida brasileira, e a enorme desigualdade social existente, associada ao passado escravista, ainda vivo no Brasil. Apesar dessas tragédias sociais, nem sempre o ódio aflorou de modo tão explícito, quanto no contexto atual. Ele, em outros instantes, não ocupou o lugar de centralidade, que adquiriu nos tempos atuais. Hoje o ódio passou a ser acionado quase sem limites. Ele transpassa o Brasil.
A presença escandalosa do ódio e as frágeis limitações para sua utilização turvam completamente o que restou de ambiente democrático no país, abalado, a ferro e fogo, pelo golpe midiático-jurídico-parlamentar de 2016 e pelas eleições não democráticas de 2018. O ódio transforma os adversários em inimigos. Em inimigos a serem destruídos. O respeito à divergência de opiniões entre adversários políticos, condição imprescindível para existir a democracia, está quase abolido. Em seu lugar, a cena fica contaminada pela construção incessante de inimigos, a destruir. Estão quase interditados a pluralidade, o confronto e o debate de posições políticas diferenciadas. Ou seja, a vida democrática. As ameaças e violências contra os que pensam, agem e são diferentes se tornam banais. O assassinato de Marielle Franco no centro de uma das maiores metrópoles brasileiras representa as muitas violências e mortes, que dilaceram a civilidade e a República no país.
A democracia brasileira tem sido frágil e de baixa densidade, devido ao autoritarismo estrutural, que a corrói, e a enorme desigualdade social, que a corrompe, ao excluir parte significativa da população dos direitos de cidadania. Ela, em muitos períodos, funciona como uma democracia apenas formal, quase de fachada, sem possibilitar participação e direitos para uma grande parcela do povo, quase sempre marginalizada da vida nacional. Nas parcas oportunidades em que a democracia ameaçou se transformar também em uma democracia mais substantiva, garantidora de direitos, as classes dominantes não tiveram nenhum pudor de recorrer aos golpes, de variados tipos, para destruir a débil democracia.
O recurso atual ao ódio como componente, nada desprezível, do atual contexto nacional deriva dessa histórica postura antidemocrática das classes dominantes. Ele não nasceu nas redes sociais, nem nos setores da extrema-direita, como muitos querem fazer crer para se eximir de suas responsabilidades. Por óbvio, já existia uma grande dose de ódio na extrema-direita, pois o ódio é e sempre foi um traço imanente de sua própria existência. Mas o ódio estava circunscrito aos membros dessa fracção e aos nichos autoritários, que existem na sociedade brasileira. Esse ódio latente, algumas vezes, era até rechaçado em público por entes políticos de centro e mesmo de direita. Certa civilidade parecia possível na arena política desde o final da ditadura civil-militar de 1964, ainda que a débil democracia conquistada se apresentasse, em demasia, complacente com atos, ideias e gestos autoritários, que traduziam ódio e violência.
A incapacidade política dos partidos de direita de vencerem as eleições de 2002, 2006, 2010 e 2014 levaram tais segmentos mais uma vez a abandonar qualquer compromisso com a democracia e apelar para atitudes antidemocráticas, visando tomar o poder político federal. Apesar de recorrerem ao ódio para agredir a democracia, os agentes políticos não foram os maiores responsáveis por sua fabricação. O golpe de 2016 só foi possível de ser construído pela intensa produção de ódio, desenvolvida desde 2005, por outros segmentos da sociedade, além dos políticos, partidos e poderes, que se mobilizaram para realizar o golpe contra a democracia.
O núcleo central da fabricação do ódio foi a grande mídia, que de modo quase unânime, buscou inocular o veneno cotidiano na população brasileira. A revista Veja, que em outros momentos primou pelo jornalismo de qualidade, se transformou em um panfleto semanal regado à sangue. Sua emblemática capa com a cabeça de Lula banhada em sangue sintetiza o “jornalismo de campanha”, na expressão utilizada por Emiliano José, que tomou conta e corrompeu a revista. A Rede Globo, por meio de sua potente audiência, junto com o SBT, a Record, a Band, o Estado de São Paulo, a Folha de São Paulo, O Globo, a revista Época, a Isto é, a rádio Jovem Pan e muitos outros órgãos da dita grande imprensa, participaram ativamente da campanha de produção do ódio à esquerda e, em especial, aos petistas e suas lideranças.
Para produzir tal ódio, esses veículos abandonaram a discussão das políticas públicas, boas ou ruins, dos governos de esquerda, como é papel do jornalismo em regimes democráticos. Em lugar do debate fiscalizador das políticas públicas, eles entronizaram a corrupção como principal e quase único problema nacional. O deslocamento da agenda política, retirou de cena a discussão sobre as políticas públicas, em geral bem avaliadas pela população, e colocou em foco o tema da corrupção. Tal movimentação torna-se vital para reconfigurar do cenário político, desfavorável aos partidos de centro e de direita, que se mostravam incapazes de pôr em xeque as políticas públicas desenvolvidas, com destaque para as ligadas à inclusão social. Assim, ficavam impossibilitados de derrotar a esquerda e o PT de maneira democrática. A mudança do cenário emerge como fator fundamental para a criação de outro ambiente para a disputa política. Mais uma vez, a corrupção foi acionada no cenário brasileiro com objetivo nitidamente político. A trajetória do uso instrumental do tema da corrupção merece ser tratado em outro texto.
A associação construída, deliberada e sistematicamente, entre PT, esquerda e corrupção, desde 2005, sedimentou em uma parcela da população uma animosidade profunda contra a esquerda, os petistas e suas lideranças, quando não um visceral ódio a eles. O jornalismo de campanha da grande mídia escondeu a corrupção de muitos políticos e partidos, em especial do PSDB, do mesmo modo que ocorreu com a Operação Lava Jato, e demonizou, de maneira cotidiana, enfática e sistemática, a esquerda e os petistas como responsáveis pelo maior esquema de corrupção já visto no Brasil. Os muitos episódios de ódio explícito e de violência à esquerda, ao PT, aos militantes e às lideranças petistas, com destaque à Lula, em diversas ocasiões e cidades brasileiras, demonstram cabalmente os efeitos da fabricação cotidiana do ódio, durante 15 longos anos. Inúmeras pesquisas confirmam o abandono dos critérios basilares do jornalismo e o caráter de mero ator político assumido pela grande mídia brasileira. A ausência do efetivo exercício jornalístico e da pluralidade de opiniões compromete, em profundidade, a vida democrática brasileira.
O ódio contaminou e polarizou a sociedade brasileira como nunca. A convivência com a diversidade política até ali muitas vezes possível no seio das famílias entrou colapso. O nível de radicalização tornou inviável a convivência. O ódio dilacerou a civilidade e os episódios de brutalidade e violência, física e simbólica, embriagaram o ambiente político, degradando ainda mais a débil democracia brasileira, já intensamente fragilizada desde o golpe de 2016.
Rememorar todo este processo, ainda em andamento, torna-se essencial para revelar os responsáveis pela fabricação do clima de ódio no atual cenário político nacional. Por óbvio, que a produção do ódio não aconteceu como mera invenção sem algum substrato. A grande mídia inventou notícias, que conseguiram mobilizar dimensões imanentes do autoritarismo estrutural presentes na sociedade brasileira. Discriminações, preconceitos, privilégios e violências de toda ordem foram acionados e estimulados pela imprensa para desqualificar a esquerda e viabilizar a tomada antidemocrática do poder federal. Hoje a grande mídia vocifera e quer responsabilizar as redes sociais como usina responsável pela produção de fake news. Certamente, ela deseja esconder suas responsabilidades como inauguradora nacional das notícias falsas no país recente.
Um efeito perverso e imprevisto para os responsáveis, na grande mídia, na política, nos poderes da República e no empresariado pelo envenenamento cotidiano dos brasileiros pelo ódio, foi a constituição de um cenário de animosidade tão antissistema da política, que terminou atingindo inclusive os aliados de centro-direita, dos quais parte significativa da grande mídia é servil porta-voz. A dose cavalar de ódio inoculada na sociedade atingiu tal patamar, que tornou o ambiente propício para entes mais familiarizados com o ódio e a violência, permitindo a expansão da extrema-direita na política nacional até ela chegar, por eleições não democráticas, ao governo nacional. Com a extrema-direita do poder federal, associada às milícias e aos fundamentalismos, a autorização plena está dada para que o ódio e a violência, física e simbólica, invadam como nunca a vida política brasileira. O Gabinete do Ódio expressa e resulta, em síntese, do brutal processo de inoculação do ódio na sociedade brasileira.
*Albino Rubim é pesquisador em políticas culturais. Atualmente professor do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (UFBA).