Por Cláudio Guedes*
Hoje é centenário de nascimento de Celso Furtado, o grande intelectual e economista brasileiro. Uma data plena de significados.
Celso Furtado foi um dos grandes pensadores do país. Muitos o definem com um “construtor”, alguém que elaborou (construiu) a partir de reflexões próprias uma visão, uma idéia, do país e dos seus desafios históricos.
Acho que é uma boa escolha, mas prefiro defini-lo à maneira de Ezra Pound, o polêmico intelectual e poeta americano, autor do fundamental “ABC of Reading”, de 1934 (“ABC da Literatura”) . Na obra, Pound classifica os escritores em cinco categorias: inventores, mestres, diluidores, bons escritores, belles lettres e lançadores de moda.
Furtado, que não foi apenas um intelectual, não foi apenas um escritor, mas um homem de ação, foi sem nenhuma dúvida um “inventor”, a mais alta categoria de um intelectual, de um pensador. Inventou uma forma de pensarmos o Brasil a partir de sua obra seminal, de 1959, “Formação Econômica do Brasil“. Um estudo original sobre o processo histórico de constituição da economia brasileira. Fui procurar na estante do apto em São Paulo o meu exemplar que, acho, continha as anotações que fiz ao ler – mania de jovem leitor. Não achei. Provavelmente emprestei para alguém que tanto gostou que o reteve para si ou foi doado numa das vezes que fizemos doações de livros importantes às bibliotecas públicas. Prática que temos feito com frequência – livros precisam circular, em estantes quando não são usados para o trabalho são peças de utilidade duvidosa.
A leitura do livro, em meados dos anos 70, teve um impacto singular na minha formação intelectual. A partir da sua leitura, eu, apenas um jovem físico que buscava especialização no campo das ciências, entendi um pouco o que era o Brasil, nosso país, este grande desconhecido. Passei a compreender as raízes históricas do nosso subdesenvolvimento, os obstáculos que bloqueavam a formação da economia nacional, o atraso na formação do mercado interno, a subordinação da substituição de importações à lógica da modernização dos padrões de consumo e a presença entre nós de fortes heterogeneidades produtivas, sociais e regionais. Foi uma revelação tão marcante que moldou muitas das minhas escolhas políticas e profissionais desde então.
Continuei lendo outros livros de Celso Furtado. Entre estes, os ótimos “Teoria e política do desenvolvimento econômico”, de 1967, e o “O mito do desenvolvimento econômico”, de 1974. Um economista que escrevia não para economistas, não para especialistas, mas para interessados. Uma novidade.
E depois, para a minha alegria e de tantos que o admiravam, suas incursões no campo da política cultural e os fascinantes textos memorialísticos onde economia crítica, cultura e impressões da política do Brasil e do mundo se misturam com elegância e fluidez: “A fantasia organizada”, de 1985, “A fantasia desfeita”, de 1989 e “Os ares do mundo”, de 1991. Leituras prazeirosas.
Muitos relançados e alguns re-editados na forma de pequenos compêndios graças ao magnífico trabalho da jornalista e tradutora Rosa Freire d’Aguiar, viúva de Celso Furtado e curadora de sua preciosa produção intelectual. Rosa recentemente nos brindou com o ótimo “Diários Intermitentes 1937-2002”, de 2019.
Celso Furtado, uma viagem que hoje, 26/7/2020, completou um século. Como trata-se de um inventor, uma viagem que possui apenas começo. Uma viagem sem fim, para quem quiser compreender um pouco deste enigma chamado Brasil.
*Cláudio Guedes, 66 anos, é físico e empresário.